Entrevista

Conhecido por 'Madame Satã', Flávio Bauraqui acumula trabalhos no audiovisual

Flávio Bauraqui pode ser visto nas produções 'Arcanjo renegado', 'Macabro', 'Abraço' e 'Pureza'. Ao Correio, ele fala da carreira e decreta: 'A realidade é desigual e hostil. Então acho que realmente é importante resistir'

Ricardo Daehn
postado em 21/11/2020 06:04
 (crédito: Condé + Produção/Divulgação)
(crédito: Condé + Produção/Divulgação)

Na cadeia de sucessos, como ator, cantor e compositor, Flávio Bauraqui faz questão de priorizar um elo: o do público. “A plateia é linda e sempre justifica tudo. A conexão é o grande sentido de tudo que a gente faz”, explica ele, que atualmente se diz beneficiado pela generosidade do audiovisual. Passados 18 anos, desde a estreia com Madame Satã, Bauraqui pode ser visto na série Arcanjo renegado, está em alguns cinemas do país, à frente de dois longas baseados na vida real: o terror Macabro e o drama Abraço, em que professores sergipanos se mobilizam contra retrocessos nos direitos trabalhistas. No circuito de festivais, Bauraqui se destaca em Pureza, produção brasiliense comandada por Renato Barbieri.

Mudar, de repente, o rumo dos humores das pessoas, na pandemia, tem feito bem ao ator que diz receber muitas mensagens e carinhos, quando canta num vídeo, quando posta uma dança ou ainda se desdobra entre stories e lives. Na ponta da língua moram os artistas que serviram como inspiração para o artista, que elenca os negros Grande Otelo, Ruth de Souza, Léa Garcia, Cartola, Ismael Silva e Lupicínio Rodrigues. Quando o assunto é racismo, o ator, nascido no Rio Grande do Sul, percebe descaramento e força no racismo. “O jeito de ser racista é diferenciado, e o vejo em todos lugares. É bem triste, perceber, constar isso. Mas eu acredito também nos coletivos, nos movimentos que estão aí. As coisas e as questões, da nossa parte, de nós pretos, em evolução. Há pastorais mobilizadas, e isso muito me alegra”, observa, em entrevista, ao Correio.

O fato de ser artista no Brasil, e experimentar o 2020, te deixa vulnerável ou revigora objetivos?
Eu acredito que as duas coisas. Estamos todos vulneráveis, até os que acham que não estão, estão, sim. E revigora objetivos. Porque surgiu uma nova forma de viver. Um jeito novo de olhar para o mundo, tentando entender que mundo é esse em que estamos inseridos.

Como contornou ou enfrentou casos de racismo na vida?
Enfrentei cada caso de uma forma diferenciada, por serem circunstâncias diferentes. Muito embora o racismo sendo o mesmo. Mas quando falo do específico, é pelo fato de terem sido preconceitos em ambientes e situações diversas. Minha reação foi de acordo com cada circunstância dessa. Acho que vale a pena bater de frente com sistemas. Na verdade pesa é a resistência, porque estamos em um país democrático, porque somos todos muito importantes e somos seres iguais, mas a realidade não é essa: a realidade é desigual e hostil. Então acho que realmente é importante resistir.

Há desserviços patentes no Brasil da atualidade?
Realmente vejo que desserviços são muitos. Não acreditar na ciência é um. Há o desserviço das fake news, na desinformação há desserviço. Acho que o momento que estamos vivendo está protagonizado por desserviços ao nosso país. O mundo está assim. Mas acredito que existe uma ação e uma reação. Tudo o que está sendo feito está nos tornando mais fortes, num sentido. Os grupos estão se formando, estão se estabelecendo. Então, aquele que é atacado conta com uma reação a esse ataque. Acredito nisso.

O que legitima cotas raciais na sua opinião?
Na minha opinião, o básico: porque nós fomos jogados, nossos descendentes, jogados sem nenhum amparo. Servimos a um sistema e depois jogados fora. Então é uma questão de ressarcir, de tornar iguais. Esta frase que todos repetem: “somos todos iguais”. Então que sejamos, e acho que essa é uma reparação. Não vejo como esmola: não é esmola. É uma reparação, eu acho justo. Há quem discorde, mas vivemos em um mundo democrático. Pessoas podem discordar. Eu acredito que seja muito importante ter cota.

O que pode falar do longa Pureza, de Brasília, e que percorre festivais de cinema?
Pureza é um filme lindo que está ganhando muitos prêmios. Narciso é um personagem que interpreto e que simboliza aquela parte bem terrível do ser humano: você vê um tipo de capataz que é capitão-do-mato dos seus, dos seus iguais. Ao mesmo tempo, você vê que ele está cego pela própria vaidade e por essa coisa de querer torturar o outro, de achar engraçado. É algo que estamos vivendo hoje em dia, em outras escalas, com outras caras, outros figurinos e outras cores. Mas, no fim, estamos vivendo exatamente isso: ver este certo prazer de torturar o outro. O prazer da maldade, do culto a isso, achar isso estratégia interessante. E você vê mais do que isso, um personagem que representa um lugar onde, nesse país tão grande, o estado não consegue proteger o cidadão. Porque isso acontece livremente, digo, o trabalho escravo, e ainda hoje acontece, fora um outro tipo de escravidão que a gente vive hoje: a moderna. Há quem insista em querer deixar a escravidão ficar, mas vai ter que entender que o mundo mudou e as coisas mudaram. Nós (negros) estamos agindo de com isso de uma forma bem diferente e não estamos aqui de brincadeira.

O que leva ao decaimento de Narciso, em Pureza?
Enquanto o ator, houve uma interessante construção de personagem. O personagem se perde no próprio ego dele. Ao mesmo tempo, sempre tento colocar, mesmo que eu descorde completamente da postura do personagem, tento perceber que aquele ser nasceu, foi uma criança, foi alguém esperando, desejado por alguém. Foi indefesa depois parto para entender como foi o trajeto para chegar naquele ser humano. Qual foi a receita pra terminar nesse ser humano que é super questionável: no ser sem coração, sem nada. Foi complexo e sutil viver o Narciso.

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