Cinema

"Quero defender a luta da mulher", diz atriz Marcélia Cartaxo

Atriz Marcélia Cartaxo brilha no drama 'Pacarrete' e mostra como driblou e ainda enfrenta preconceitos para seguir a carreira

» Ricardo Daehn
postado em 07/12/2020 06:00 / atualizado em 07/12/2020 08:42
 (crédito: Luiz Alves/ Divulgação)
(crédito: Luiz Alves/ Divulgação)

“Eu estou forte e estou na luta, viu? Na luta na cozinha, na fazenda, na rua, na farmácia, em todo canto. Eu estou bem viva! E quero aproveitar até o fim a história do meu mais novo filme. Vou até onde der!”. O aviso vem da atriz Marcélia Cartaxo, protagonista do filme Pacarrete como experimentada bailarina de vida sofrida, levada em desacordo com a cidade interiorana de Russas (Ceará).

“Quero defender a luta da mulher, a luta da igualdade e de todas as raças; vamos resistindo”, observa Marcélia, que, com quase 40 anos de carreira, pulsa o entusiasmo de uma iniciante. “Geralmente, estou em filmes de diretores estreantes, como foi o caso de Karim Aïnouz, com o importante filme Madame Satã, que tratava de um negro, artista, sofredor de preconceito. Com Laurita, minha personagem que era uma prostituta, Satã formava uma família nada convencional”, lembra a atriz paraibana.

Com participações antes espaçadas no audiovisual, Marcélia celebra a leva de filmes que a tem desafiado como protagonista e antagonista. “Me dedico bastante, por ser apaixonada por minha carreira”, explica.
Marcélia relembra de outro marco: Helen (de André Meirelles). “No longa, sou uma avó que vive para o trabalho e na informalidade, e cuja neta quer obsessivamente presentear”, explica. Entre vários filmes, a atriz demarca que amou fazer, e está “louca para ver” A mãe, de Cristiano Burlam. “Faço uma camelô que não encontra o filho em casa. Tem uma trajetória rica, com muitos acontecimentos que remetem à periferia”, observa.

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Entrevista // Marcélia Cartaxo

De onde veio a construção da personagem-título Pacarrete?

O que me inspirou na Pacarrete foi a própria história dela. Existem muitas pacarretes nas cidades do interior do Brasil. As pacarretes invisíveis. Há pacarretes da minha própria vida, que colecionei nos meus diversos momentos alternando estados de espírito. Eu me inspirei ainda na Anna Pavlova (bailarina russa morta em 1931). Busquei um pouco as loucuras da cantora Edith Piaf e em muitos momentos daquele filme (com Marion Cotillard, ganhadora do Oscar de melhor atriz). Aspirei as loucuras e a lucidez de Piaf. Quis usar um pouco das técnicas dos bailarinos mais velhos, das pessoas mais velhas. Observei muito a vida de idosos e que tinham uma força, uma coragem, uma resistência. Busquei inspiração na minha mãe também, nas minhas vizinhas e nas mães dos meus amigos. Tudo lá do interior, em Cajazeiras (Paraíba). São muitas, muitas as pacarretes da vida. Trouxe para o filme as pitadas de todas elas.

Você é reconhecida por ser ativista cultural. Há bálsamo possível no fazer cultural?
Meu amor, como agitador cultural, o bálsamo instantâneo é o lançamento da Pacarrete, esse filme lindo que a gente fez. Mas, no momento, as portas estão todas fechadas. Os editais estão muito minguados; está uma situação muito difícil. Em todos os segmentos da arte. Então, celebro o processo atual: para mim veio o lançamento de um longa, com direito a boom da crítica, do público, do interesse das pessoas de verem o nosso filme. Esse é o grande bálsamo do momento atual. Mas está difícil para todo mundo, está difícil para todas as artes. A questão é de a gente se unir, sentar, organizar os projetos, se organizar, para, quando tudo isso passar, a gente poder semear as nossas plantações e colher aquilo que a gente deseja: realizar os nossos projetos.

O preconceito contra nordestinos acabou te dando forças para prosseguir na carreira?
Ser nordestina me inspirou a vencer muitos preconceitos. Travei uma luta na sociedade. Lembro que, quando eu passava na Avenida Paulista, ali, me chamavam: ‘ei, baiana!’, ‘ei, nordestina!’. Quando eu olhava para trás, ficavam rindo da minha cara e eu percebia que era realmente comigo. Então, ser nordestina me ajudou a me aceitar porque fiz muitos e muitos cursos para perder o sotaque. Muitos cursos para me transformar em algo parecido com alguém que achava jamais ia alcançar. Me inspirou a mostrar que, eu sendo eu, poderia ir muito longe. Se eu me aceitasse do meu jeito, já que todos os papéis para os quais me convidavam era para fazer nordestina.

Você se descolou da identidade?
Não. Percebi que o meu físico, que o meu sotaque, que o meu jeito de ser era único. Então eu tinha de aproveitar o momento, e o que eu tinha comigo. E o que eu sou, né? Então me ajudou a abrir portas, a abrir outros caminhos para outros nordestinos. Eles resistiram e é o que eu estou fazendo: resistindo, na minha luta, no meu jeito de ser artista. Buscando o meu jeito confortável e desconfortável até mesmo para me desafiar. Sempre sendo nordestina: tanto que voltei para o meu lugar. Porque ser um ser de luz, ser um ser único, ter um jeito de viver, um jeito de ser artista universal. Se eu conseguir tocar o coração das pessoas do jeito que eu sou, com assuntos universais, temas inerentes a todo mundo, eu consegui ser uma pessoa grande, uma artista que conseguiu tocar o coração das pessoas. É aí que se consegue viver verdadeiramente a arte.

O que representou ter ganhado prêmio de atriz no Festival de Berlim de 1986, com A hora da estrela?
A hora da estrela e o prêmio do Festival de Berlim definiram a minha vida, a minha carreira. Até então, eu morava na cidade do interior, na Paraíba, e todos os meus amigos do grupo estavam indo embora para João Pessoa, e eu não tinha perspectiva de sair daquele lugar. Se não fosse A hora da estrela acho que estaria lá até hoje.

Com resultados práticos?
Me deu muitas oportunidades, muitas perspectivas de me perceber de me botar em prática. Na minha vida, resistindo. Voltei para o Nordeste e estou aqui, resistindo, perpetuando o meu jeito de ser. O que tenho e o que eu sou são transformados numa coisa maior. Através da minha arte, quero dizer muito sobre a sociedade, sobre os preconceitos, sobre a violência, sobre vencer obstáculos. Então a minha arte me salvou verdadeiramente também da loucura, da ansiedade, dos medos, dos anseios e até dos desejos. Com mais maturidade, agora, com um pouco mais de segurança, mas sempre sendo uma aprendiz na arte e na vida.

Você é um símbolo feminista. Como percebe a mulher no cinema?
A participação das mulheres no cinema ainda é muito tímida, os espaços estão fechados. Nós, mulheres, somos muito desunidas. Nós precisamos primeiro nos enxergar como pessoa e ver de verdade o outro ou a outra. Enxergar como pessoa que vai também somar, que vai agregar às nossas lutas, aos nossos pensamentos. A nossa luta, enquanto mulher, se dá na democracia, na vida e no trapalho. A gente precisa de valorização de trabalho, de valorização de espaço. A gente precisa é gritar mais alto para gente ter esse espaço. Precisamos de união. A gente precisa de políticas públicas que deem mais espaço. É necessário ocupar outros setores que ainda estão tímidos mas que, mesmo assim, têm sido ocupados.

O que falta para concretização?
É uma luta que ainda está sendo travada. Porque a gente precisa ler muito, estudar, se posicionar enquanto líder na sociedade, respeitar também as líderes que temos. E juntarmos com ela: na luta pelo poder, pela igualdade de gêneros. Precisamos ser respeitadas na sociedade, no sexo, na nossa jornada de luta enquanto mulher. Precisamos dividir as jornadas de trabalho. A gente precisa mostrar que tem este poder e que vamos, mais cedo ou mais tarde, ocupar este poder. É uma luta que está assim em uns 40%, ainda não chegamos aos 50%, e vamos chegar aos 100% de conquistas.

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