Cinema

Filme de duas jovens cineastas revela lado humano de uma prisão feminina

O documentário 'Saudade mundão', das diretoras Julia Hannud e Catharina Scarpellini, está disponível nas plataformas digitais (iTunes, Google Play, Net Now, Sky Play, Watch TV, Vivo Play e YouTube) e também no Canal Curta!

Em Saudade mundão, longa das diretoras Julia Hannud e Catharina Scarpellini, Nina, Leia, Coringa, Sandra e Elisabette não são apenas mulheres que integram as estatísticas do sistema penitenciário feminino brasileiro. Elas são o retrato da injustiça, do abandono e da marginalização iniciada muito antes do encarceramento.

O documentário, que leva no título o canto das presas ao se despedir de uma interna que deixa a cadeia, chegou, no fim de 2020, às plataformas digitais (iTunes, Google Play, Net Now, Sky Play, Watch TV, Vivo Play e YouTube) e também ao Canal Curta!. A produção é uma versão estendida de Amor só de mãe, curta produzido por Julia e Catharina como trabalho de conclusão do curso de cinema.

Catharina Scarpellini/Divulgação - Longa 'Saudade mundão'

Enquanto a maioria dos outros formandos produzia um material de ficção, as duas resolveram revelar uma face muitas vezes negligenciada inclusive em produções audiovisuais. "Tínhamos interesse por questões sociais e assuntos femininos. Além disso, a maior parte dos filmes sobre penitenciária é feita em presídios masculinos ou retratando esse universo, então optamos por falar sobre mulheres no cárcere", explica Catharina. "É um projeto de mulheres, feito por mulheres, sobre mulheres", acrescenta Julia, em entrevista ao Correio.

O resultado é um material que vai além dos números do sistema penitenciário brasileiro - revelados apenas na abertura da produção. No decorrer dos 90 minutos, Saudade mundão apresenta cinco personagens principais e algumas secundárias, detentas da Cadeia Pública de Franca, no interior de São Paulo, que protagonizam histórias de mães e filhas trazendo o lado mais humano, sincero e honesto. São mulheres que já foram presas mais de uma vez; que lidam com o vício da droga; que pisaram, pela primeira vez, em uma prisão aos 12 anos; até mães que assumiram a culpa para livrar quem mais amam: o filho.

Encontro

Entrar em um presídio para filmar detalhes do cotidiano e da vida das detentas, com o grau de acesso que Julia e Catharina tiveram, não foi tarefa fácil. Primeiro, as duas tentaram entrar em presídios da capital paulista e não conseguiram. Em seguida, tiveram acesso a uma cadeia de Araxá (MG), cidade natal de uma delas, mas não puderam gravar.

"Percebemos, ao longo do processo, que, de unidade para unidade, muda muito. Não existe um padrão mesmo dentro do mesmo estado", comenta Julia. Enquanto em Araxá as detentas estavam o tempo todo acompanhadas das carcereiras e andavam com as mãos para trás e de cabeça baixa, em Franca, além do menor número de presas, a instituição permitia, por exemplo, que as mulheres usassem as próprias roupas e cozinhassem as próprias refeições (a cadeia foi desativada há alguns anos). "É a prova de que as realidades no Brasil se diversificam muito", completa Catharina.

Catharina Scarpellini/Divulgação - Longa 'Saudade mundão'

A maneira como a penitenciária estava organizada na cidade paulista permitiu às cineastas uma conversa mais direta e menos filtrada com as detentas. "Era a gente com elas", descreve Julia. Apesar de, em um primeiro momento, algumas apresentarem certa resistência, aos poucos elas se aproximavam para serem ouvidas. "O que a gente queria contar sobre aquele lugar ia muito além dos números. Nas visitas, buscamos entender quem eram elas e elas, quem era a gente. Quando elas estavam mais confortáveis, trouxemos a câmera. Elas se preparam para a filmagem, estavam ali para falar sobre o que elas quisessem, para montar o personagem que elas quisessem sobre elas mesmas", relembra.

Apesar do processo de estudo e pesquisa para a produção do material, o contato foi difícil. "A gente sabia que seria assim, mas na hora que você vê é diferente. É muito injusto e são histórias muito difíceis. São mulheres que estão ali esperando julgamento por um baseado, por coisas do filho apreendidas. Você nunca viu a cara dessas pessoas. É bem impactante", analisa Catharina.

Na palavra das diretoras, foi um momento de encontro. Mesmo com a distinta realidade, os mundos se aproximavam, sobretudo, nas questões do universo feminino. Machismo e patriarcado se tornaram assuntos de conexão de trocas que aconteciam, muitas vezes, com a câmera desligada. "Na época, estava muito abalada emocionalmente. Claramente que escutar a história delas não é fácil, você vai voltar e elas vão continuar lá. Foi sofrido ter que ir embora, porque foram pessoas que transformaram a minha vida", afirma Julia.

Coprodução

"O que vocês querem saber", questiona uma das internas. "Onde o filho chora, a mãe não vê, aqui é sofrimento", afirma outra. No decorrer dos 90 minutos do longa, são relatos de dor e luta que se cruzam entre risadas e lágrimas. "São histórias marcadas por uma ausência muito antes de chegar naquele lugar. Aquelas mulheres já foram excluídas muito antes de um espaço de privação de liberdade. São histórias que se repetem no abandono do Estado, no abandono familiar, na relação com as drogas, de forma sistemática e racial. É uma sequência de ausências de negligências que as levaram para dentro daquele espaço", conta Julia.

Catharina Scarpellini/Divulgação - Longa 'Saudade mundão'

Entre os depoimentos, as cineastas revelam um cotidiano monótono e limitado que, se não fossem as realidades e os muros, se assemelha ao dia a dia de outras mulheres brasileiras. Tarefas domésticas, como a faxina, a cozinha, a roupa suja, a oração e o lazer. "Desde o início, queríamos tratar o cotidiano delas, incluindo como é. Então, acho que foi uma das coisas que a gente focou muito. A ideia era começar mostrando a cadeia sem mostrar que era a cadeia, mas sim o que realmente acontece lá dentro", explica Catharina. "Mostramos ali como elas fazem para passar o tempo e para ganhar dinheiro, já que as ações do cotidiano também são formas delas se sustentarem dentro do presídio", pontua Julia.

Chamou a atenção das cineastas o senso de comunidade entre as internas e o respeito entre elas. "Mas não é sobre sororidade", explica Julia. "Vivem uma situação hostil e, muitas vezes, vieram de situações hostis, então, se não fosse uma ajudando a outra, seria muito pior", acrescenta. O olhar para o universo das detentas também ganhou mais espaço na produção, pois as próprias protagonistas puderam filmar detalhes da rotina no período da noite.

Apesar das imagens teriam sido captadas em 2016 e o material finalizado há dois anos, para as cineastas, o debate permanece urgente e atual. "É um cenário muito alarmante. Na época, em 2016, os números de mulheres presas tinham subido em 600% em poucos anos. Agora, as leis antidrogas estão ficando mais rigorosas e quem está pagando por isso são as comunidades periféricas. É o momento de fazer uma reestruturação do sistema carcerário. Não funciona e não é justo", avalia Catharina. Depois do contato que teve, a diretora passou a não acreditar no processo de ressocialização. "O buraco é muito mais embaixo e começa antes da porta da cadeia".

Mesmo que Saudade mundão não se proponha a fazer uma investigação sobre o sistema prisional, apresentá-lo agora é trazer o tema para ser debatido. "Fazer com que o assunto se reverbere além da experiência do filme. Ter empatia por meio do filme, entender que elas precisam de emprego e trazer esse lado humano para fazer essa conexão. O que podemos fazer a partir do momento que uma delas bate na sua porta para pedir emprego? É sair da nossa zona de conforto", argumenta Julia.

Serviço:

Saudade mundão
Documentário, 90 minutos.

Catharina Scarpellini/Divulgação - Longa 'Saudade mundão'
Catharina Scarpellini/Divulgação - Longa 'Saudade mundão'
Catharina Scarpellini/Divulgação - Longa 'Saudade mundão'
Catharina Scarpellini/Divulgação - Longa 'Saudade mundão'