Literatura

Realidade brasileira afeta a produção literária contemporânea

Autores como Daniel Galera e Maria Esther Maciel publicam livros influenciados pelas crises sanitária, política e social brasileira

Distopias, fantasias delicadas sobre seres híbridos, personagens femininas combativas, romance policial à moda antiga, a busca por uma irmã. A nova leva de livros de autores brasileiros que desembarca nas livrarias tem uma gama variada de temas e reflete um bom momento da produção nacional. Uma boa opção para as férias de julho.

A realidade pandêmica e distópica parece ter batido à porta da literatura nacional, e o momento político e sanitário respinga nos textos de autores como Daniel Galera, Maria Esther Maciel, Henrique Barreto e outros. Confira uma seleção de títulos recém-lançados que estão entre o melhor da produção atual.

Distopia, fantasia e natureza

Daniel Galera começou a escrever O deus das avencas ainda em 2019, antes da pandemia, mas acabou atravessado pelas mudanças no mundo em decorrência da crise sanitária, que acabou por respingar na escrita das três novelas publicadas nesse novo livro. Na primeira, que dá título ao volume, um casal passa por um trabalho de parto prolongado no final de semana das eleições de 2018. A tensão política do país, prestes a eleger um candidato de extrema direita, dialoga com a tensão no espaço íntimo da iminência de um nascimento.

A segunda novela, Tóquio, traz um futuro não muito distante no qual a tecnologia permitiu aos humanos a armazenagem da consciência em um processo que acabou se revelando disfuncional. Em Bugônia, que encerra o livro, uma comunidade vive em certa harmonia com a natureza em um equilíbrio frágil e delicado de um mundo alocado em futuro distante. Graças ao mel produzido pelas abelhas, esse grupo de humanos sobrevive às bactérias com potencial para dizimar a humanidade, mas o sucesso dessa sobrevivência depende de um acordo e da harmonia entre insetos e homens.

Há um certo encadeamento entre as três histórias, embora tenham sido escritas de forma independente e com um otimismo que impede o autor de mergulhar em cenários apocalípticos. “Poderia ser o mesmo mundo, não pensei nas novelas como um encadeamento, episódios. São mundos imaginados de maneira independente. É um pouco de cada coisa, mas elas são unidas pela percepção de que existem soluções para as catástrofes, que a gente está autorizado a batalhar para que as coisas melhorem. Não queria que o livro fosse nesse espírito de ‘estamos ferrados’”, conta Galera.

O escritor acredita que a situação política e sanitária vivida pelo país e pelo mundo está também mudando a literatura. “Muito dessa ficção que está se produzindo agora tem esse afã de imaginar mundos diferentes e se contrapõe à literatura produzida pela minha geração, que se voltava muito para o indivíduo, para o mergulho no ego, na individualidade”, explica. “A gente está em outro momento da produção literária, marcada por essa transição do individual para esse coletivo especulativo, com outras versões do nosso mundo presente que vão nos ajudar a solucionar os impasses do que pertence ao real.”

Seres fantásticos

Foi a pandemia que fez a escritora mineira Maria Esther Maciel ficar mais próxima das plantas. Do cômodo no qual trabalha, em Belo Horizonte, ela enxerga o próprio jardim. A proximidade com as plantas alimentou a pesquisa para escrever Pequena enciclopédia de seres comuns, na qual a autora mergulha em nomes e descrições delicadas e poéticas de dezenas de seres.

Há um tempo, Maria Esther iniciou uma pesquisa acadêmica sobre animais na literatura. Vasculhou compêndios zoológicos do mundo antigo à época contemporânea, passando pelos bestiários medievais, os livros de história natural e os manuais de zoologia fantástica. “Como sempre busquei articular minhas pesquisas acadêmicas com meu trabalho criativo (e vice-versa), resolvi fazer algo nessa linha, porém mais sintonizado com as demandas do nosso tempo”, conta.

Ela escolheu animais existentes ou que poderiam existir, além de plantas de diferentes espécies. Nenhum dos seres é fantástico ou monstruoso, mas pelo menos quatro foram inventados, entre eles o adorável peixe-banana, diretamente saído de um conto de J.D. Salinger. “Incrível como a natureza também é cheia de viventes incomuns, que muita gente poderia achar fabulosos ou até absurdos”, garante Maria Esther.

Na escrita, a autora atribui aos seres comportamentos e características que levam o leitor a conferir-lhes alguma subjetividade. É uma forma de aproximá-los de um mundo no qual são vitais para a sobrevivência e de dar-lhes uma certa alteridade. “Sem plantas, árvores, insetos, mamíferos, aves, répteis, peixes e tudo o que vive, o mundo não existiria, e tampouco a humanidade. Por isso, me preocupam tanto a destruição generalizada da natureza, os incêndios criminosos de florestas, a matança e a extinção de espécies animais e vegetais, a poluição dos rios, o avanço das usinas e mineradoras que, em nome do “desenvolvimento”, vêm transformando o mundo numa terra devastada. Epidemias como esta que estamos enfrentando têm a ver também com a maneira como os humanos têm lidado com a natureza e outros viventes que compartilham conosco a experiência do mundo”, diz a autora.

O deus das avencas
De Daniel Galera. Companhia das Letras, 248 páginas. R$ 54,90

Pequena enciclopédia de seres comuns
De Maria Esther Maciel. Todavia, 110 páginas. R$ 56,90

Outros lançamentos

Nada vai acontecer com você
De Simone Campos. Companhia das Letras, 190 páginas. R$ 59,90
Lucinda está em busca da irmã, que desapareceu misteriosamente. Nessa jornada, ela mergulha na intimidade da irmã para descobrir coisas das quais nunca suspeitou. É em ritmo de romance policial que Simone Campos constrói essa narrativa.

A horta
De Henrique Barreto. Incompleta, 142 páginas. R$ 47,00
É possível fugir da realidade? Como enfrentá-la ao perceber que essa fuga é impossível? O recomeço é um mito? Os personagens de Henrique Barreto empreendem uma espécie de reviravolta existencial ao questionarem os próprios limites e a realidade.

Baixo esplendor
De Marçal Aquino. Companhia das Letras, 260 páginas. R$ 49,90
Marçal Aquino não publicava um romance há 16 anos. De volta às prateleiras, ele traz a história de um policial que se infiltra em uma quadrilha de roubo de cargas em plena ditadura militar.

 

Iana Domingos/Divulgação - Maria Esther Maciel
Marco Antonio Filho - Escritor Daniel Galera