MÚSICA

Artistas da periferia chegam ao grande público falando de suas vivências

Artistas do rap, funk e de gêneros ligados ao hip-hop chegam ao grande público falando de vivências das próprias comunidades. Mas eles dizem que ainda é preciso superar muitas barreiras

Isabela Berrogain* - Pedro Ibarra*
postado em 14/09/2021 06:00
X, do Câmbio Negro: ainda faltam oportunidades para o rap -  (crédito: Carlos Vieira/CB/D.A Press - 29/11/18)
X, do Câmbio Negro: ainda faltam oportunidades para o rap - (crédito: Carlos Vieira/CB/D.A Press - 29/11/18)

O hip-hop nasceu nas periferias norte-americanas, como uma música feita para as pessoas que ali moravam. Mas, aos poucos, se espalhou pelo mundo inteiro, primeiro nos guetos e, em seguida, tomou o mainstream. Ao incorporar referências locais, o hip-hop brasileiro é cada vez mais popular, soma milhões de reproduções nas plataformas de streaming e está levando vivências e experiências diferentes a um público maior.

Filipe Ret é um dos nomes de maior destaque do rap nacional. Começou nas batalhas de rap da Lapa, bairro do centro do Rio de Janeiro, e, agora, assume a responsabilidade de se apresentar em alguns dos maiores palcos do país. O rapper retoma as próprias origens e lança Tributo ao TTK, uma música que também dá o título a um minidocumentário sobre a região do Catete, no Rio de Janeiro, onde cresceu, deu os primeiros passos na carreira e vive até hoje. O filme foi lançado pela Amazon Music, tem direção do próprio cantor e vários grandes nomes do rap carioca e nacional.

O minidocumentário conta a história do rap da região de onde surgiram nomes como o próprio Ret, Marcelo D2, BK, Akira Presidente e Sain. “A gente fala TTK, mas estamos falando desde o Flamengo, que é zona sul, até a Lapa, que já é centro da cidade. Então, a gente está falando de uma área que é multicultural, tem praia, favela, asfalto, centro, zona sul, e tudo isso em um lugar só”, conta Filipe. Ele percebeu após o documentário que, apesar de tocar para o Brasil inteiro, ainda tem traços muito fortes do lugar onde cresceu. “Eu fui crescendo, e esse localismo ficou em mim. Só continuei essa cultura e, depois, fui entender que é isso que faz o hip-hop”, pontua.

“O minidocumentário abre um ponto, porque, se você pensar que a primeira batalha de Mcs do Brasil foi na Lapa, o Catete tem uma importância violenta para história do rap carioca e nacional”, conta Ret. Ele carregou essa essência, e como nas pichações que fazia quando era adolescente, evoluiu para o músico que é hoje. “É exatamente o mesmo fundamento que evoluir a própria letra na pichação. Quando você picha, a sua letra nunca para de evoluir, ela vai ficando cada vez mais arrojada, parece que chegou ao limite, mas não chegou, porque não tem limite”, explica Ret. “A música tem essa plasticidade, então, ela também não tem fronteira para evolução musical e para o estudo”, completa.

Para WC no Beat, um dos expoentes do trapfunk, gênero que une o rap ao funk, a evolução musical do rap nacional tem ocorrido em escala mundial. “O rap brasileiro está em Nova York, na Times Square. Então, isso mostra que, querendo ou não, nós quebramos barreiras incrivelmente grandes”, afirma o produtor musical.

Resistir aos preconceitos

Apesar da projeção nacional e internacional que o rap vem conquistando, ainda há muito o que percorrer. Para X, vocalista do grupo Câmbio Negro, até hoje faltam oportunidades para o rap e os artistas do gênero. “Eu acho que o rap poderia estar aparecendo muito mais, estar mais nessa cena se as oportunidades fossem dadas”, opina. “Às vezes, me parece que é algo até planejado ‘vamos dar espaço ali para uma meia dúzia para que não se diga que oportunidades não são dadas’”, complementa.

“Durante muitos anos, tentaram apagar o valor dos estilos que nasceram na periferia, como o rap, por exemplo, mas hoje estão vendo que é impossível. É algo que existe no mundo inteiro, que gera empregos, que gera renda, que gera trabalho, informação, conscientização, diversão”, aponta X.

“Em qual topo o rap chegou? A música mais ouvida no Brasil é o sertanejo e a pisadinha, inclusive nas periferias. O rap deixou de ser referência há muito tempo, nos anos 1990, se você andasse por qualquer comunidade, ouvia rap quase de casa em casa. Na moral, falta muito para chegarmos a retomar o que foi feito no início, acho que regredimos e muito. Nos preocupamos com os ouvidos do centro, mutando de forma bruta o sons da periferia”, afirma Japão, do grupo Viela 17.

Para ele, o rap ainda é um lugar de resistência e não é porque está alcançando bons números que significa que já tem um lugar próprio. “O mesmo digo da frase ‘a favela venceu’. Não podemos julgar o trabalho de poucos artistas como unanimidade, vivemos num país onde 21 milhões de pessoas, neste exato momento, não têm o que comer. Isso explica de forma simples que a favela só vencerá quando esse problema, entre outros, forem sanados de uma vez por todas. Só venceremos de forma coletiva, isso não se refere a algo particular, mais uma vez alguns novos artistas estão caindo nesse golpe. Lembrando que o lema dos artistas de pagode dos anos 1990 era basicamente o mesmo, pretos no poder, daí eu pergunto: Onde estão esses artistas hoje?” acrescenta.

Filipe Ret concorda que ainda há muito preconceito com os artistas do meio hip-hop. “Quando um diretor faz um filme como Cidade de Deus, ele não é preso porque fez o filme. Quando um fotógrafo tira uma foto de um cara armado, se o fotógrafo for branco e renomado, ele não é preso. O rap e o funk são exatamente como uma foto ou o roteiro de um filme”, comenta o rapper parafraseando uma fala de Mc Maneirinho. “Quando é Mc Maneirinho que está cantando, não é arte mais. Isso é uma coisa a ser pensada: por que alguns tipos de música não são arte?”, complementa Ret. “A gente tem que questionar as coisas, estamos em 2021, é preciso derrubar certos preconceitos” completa.

Para Japão, o papel do rap é lutar para dar voz às vivências da periferia. “Eu acho que isso, sim, é o papel do rap nacional. Não estou aqui para julgar ninguém, o rap me fez lutar pelo livre arbítrio, mas isso não me tira o poder de guardião da cultura. Não passei 33 anos de minha vida doando cada segundo na cultura para ser um estorvo”, reflete o músico, porém não acha que uma luta seja motivo de popularização. “Continuarei lutando e utilizando minha música como parte da voz do meu povo e me inspirando nele”, diz.

*Estagiários sob supervisão de Severino Francisco.

 

 

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