Cinema

Longa sobre impactos ambientais de barragens disputa troféus Candango

'Lavra' é um dos filmes que participam do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Produção traz abordagem crítica da exploração das mineradoras

Ricardo Daehn
postado em 08/12/2021 06:00 / atualizado em 09/12/2021 11:34
 (crédito: Bruno Risas/Divulgação)
(crédito: Bruno Risas/Divulgação)

Trazer um pensamento crítico relacionado às contradições na engrenagem que aparta natureza, consumo e produção de bens tecnológicos é uma das metas de Lavra, o segundo longa-metragem na disputa pelos troféus Candango (a ser mostrado nesta quarta, no Canal Brasil, e a partir de quinta, na plataforma innsaiei.tv). "O filme questiona o modelo de desenvolvimento proposto pela mineração, mostrando lugares onde ela se instalou, mas que não resultou em mais desenvolvimento e qualidade de vida para as comunidades locais, causando — até mesmo — a sua ruína", pontua o diretor Lucas Bambozzi. Mas, obviamente, esses elementos vem a reboque de algo muito mais impactante: a morte de centenas de pessoas, diante dos crimes ambientais em Minas Gerais, e a cadeia de perdas de milhares de seres vivos.

"Há os rejeitos emocionais, que se sedimentam nas vidas dos familiares das vítimas, dos que sobreviveram, dos que estão vivendo de forma insegura e apartada de suas paisagens nesses anos todos, sofrendo com o sentimento de injustiça, de depressão, da perda de seus modos de vida e locais de lazer", reforça Bambozzi. Ele aponta as marcas permanentes em comunidades onde foram instaladas barragens: numa "espécie de terror continuado, sem fim", como diz. "Quarenta barragens foram decretadas como de risco, em alguns locais há testes de sirene, o som estridente das sirenes — hoje, ironicamente, transformado em música clássica — é também uma herança sonora de que algo muito ruim pode estar prestes a acontecer, o tempo todo", explica o cineasta.

No rastro da lama tóxica registrada no documentário híbrido — "A proposta foi que uma atriz vivenciasse situações experienciadas durante a pesquisa" —, veio o segundo crime ambiental, desta vez em Brumadinho. Daí, houve a mobilização, no calor dos acontecimentos. Numa espécie de road-movie, a atriz Camila Motta guia e se integra aos ambientes atrozes. Ela simbolizou os olhos do filme e interagiu em situações pesquisadas pela roteirista Christiane Tassis. "Nenhuma situação foi inventada no roteiro", enfatiza Bambozzi. Com poesia e teor lúdico, Lavra pretende ativar as pessoas, "para além de um estado de inatividade", registra.

Uma paisagem exploratória de cidades desponta na tela. "Serras, cachoeiras e paisagens estão desaparecendo. Lugares antes bucólicos, usados para lazer, descanso, ecoturismo, maravilhosos cartões-postais têm sido transformados em propriedades privadas; montanhas viram crateras", sintetiza Bambozzi. Conhecido por títulos como O fim do sem fim (2000) e Do outro lado do rio (2004) e versado em videoarte, documentário e instalações, além de aliado em projetos de ativismo coletivo, Lucas Bambozzi conta ao Correio o intuito da equipe de Lavra de "buscar imprimir, na fita, o sentimento de topofilia e solastalgia, presente nos poemas de Carlos Drummond de Andrade.

Entrevista / Lucas Bambozzi

O filme é denúncia de crime ambiental? Quem morre no teu filme?

Não formatamos o projeto como um filme-denúncia. Dada a vastidão dos estragos causados pela barragem da Samarco, em Mariana, imaginávamos que haveria muitos outros filmes em produção. Nos preocupamos de que um rio inteiro, o Rio Doce, ficou contaminado em toda sua extensão. Enfatizamos a extensão da tragédia, não de forma panfletária, mas mostrando as evidências que tornam o drama algo mais grave, porque trágico e criminoso. O filme parte de uma morte inicial, justamente a morte do Rio Doce. O que morre no filme é a ingenuidade diante do que é ser atingido por uma tragédia dessas proporções. Quem deve morrer é o extrativismo descontrolado e danoso.

Quais dados descobertos mais te impressionaram? A perspectiva de um mundo menos humanizado angustia?

A extensão dos estragos causados no Rio Doce, e, posteriormente, o dano causado ao Rio Paraopeba, um afluente do São Francisco (a partir de Brumadinho), são fatos chocantes, quando se vê a tragédia de perto. Nos impressiona que as empresas envolvidas sigam causando novos danos. Impressiona a forma como passamos a conviver com o trágico, cada vez mais, e aceitamos isso como normal. Impressiona também é um mundo que usa da humanização como processo de aceitação do inaceitável. E isso é mais do que angustia: é fator de indignação e reação.

O filme traz uma imagem condizente para o Brasil atual? Nossa ordem é a nova ordem da soberania do que seja privado, em face ao bem-estar coletivo?

Sim, a nova ordem parece ser a soberania do privado. As empresas envolvidas continuam faturando no mercado de valores, atendendo aos acionistas e parece que isso é tudo que importa. Isso é indignante, pois reflete uma ganância sem fim, antiética. A imagem das tragédias (há que se afirmar, são crimes) condiz com a imagem do Brasil atual. É das piores imagens possíveis para o país, e o Brasil atual reflete isso, um descaso com relação a tudo que é o comum, o bem-estar social. Um dos pontos importantes é o de questionar progresso e desenvolvimento. Qual o preço social, humano, ecológico, do que se diz ser o progresso?

Que herança é esta de rejeitos permanentes para as comunidades?

Há várias "heranças" bastante danosas, algumas concretas, outras mais simbólicas e emocionais. Além dos rejeitos visíveis da lama, sedimentados em Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, que mereceriam museu a demarcar o ocorrido, para que jamais se esquecesse o tamanho da tragédia, existem os danos diários, resultantes da atividade. Essa herança está presente de muitas maneiras no cotidiano das comunidades ao redor das minas, em forma de poeira preta nas casas de Itabira, nas rachaduras das casas das comunidades no entorno de Conceição do Mato Dentro, provocadas pelo Projeto Minas-Rio, no barulho das explosões, no cisco nos olhos, nos rios e riachos antes utilizados para lazer, que hoje são cenários, e, sobretudo, no medo nas áreas demarcadas como ZAS — Zona de Auto Salvamento, placas e listras alaranjadas no chão de Barão de Cocais e Macacos, que parecem demarcar que, a todo momento, elas podem ser atingidas pela lama. Está no território Krenak, que perdeu o seu rio sagrado, e que hoje tem que consumir água mineral em garrafas pet e comprar alimentos que antes eram fornecidos pelo rio.

O que despertou a consciência de documentar os crimes? Tua relação com a natureza sempre foi profunda?

O filme surgiu do impacto das imagens da lama da Samarco no rio Doce provocou na nossa roteirista, Christiane Tassis. Ela nasceu em Governador Valadares e isso a comoveu profundamente, trazendo à tona toda uma memória afetiva com o rio e as paisagens. Pesa a sensação de que não há como frear a destruição, que no futuro não vai haver mais natureza, beleza a ser apreciada. Cresci em Minas Gerais e vi montanhas inteiras sendo dizimadas e paisagens sendo destruídas por empresas por trás da exploração massiva de minério de ferro no entorno de Belo Horizonte. Nas várias vezes em que cruzei casualmente ou não as montanhas que compõem o quadrilátero ferrífero, o que se vê é um reflexo histórico da submissão aos interesses extrativistas, desde os primórdios da colonização ao capitalismo industrial e pós-industrial do país.

A tua admiração pelo Ailton Krenak é algo muito antiga?

Acho que todos nós, brasileiros e brasileiras, devemos, sim, admirar, e muito, o Krenak por todo o seu percurso, desde a ação no Congresso na Constituinte de 1988. Sua contribuição no campo filosófico, fazendo ecoar uma visão que não reflete eurocentrismos ou pensamentos que perpetuam a lógica colonial, é imensa. Ele está no filme por uma afinidade total com as premissas do roteiro e do percurso espacial, geográfico e narrativo do longa. Ele tem destaque por sua relação direta com o Rio Doce, em Resplendor, nas proximidades de Governador Valadares, que é o ponto de partida da personagem Camila.

O que a poesia de Carlos Drummond de Andrade agrega ao longa?

Drummond sempre foi um grande crítico da mineração. Denunciou a mineração predatória e a Vale em versos e crônicas, onde criticava diretamente a Vale. Agrega no sentido em que o filme passa por Itabira e vê as consequências da atividade em Itabira, que ele já denunciava em seus poemas. Em crônicas, dizia mais diretamente, cobrando por exemplo "instalação de siderurgia, participação dos empregados nos ganhos da empresa, critérios mais justos de participação municipal no preço do ferro e reversão do excedente em benefício da região". O desaparecimento do pico do Cauê, uma espécie de sacrifício que se fez da natureza em nome da promessa de progresso, é uma das principais referências para o filme.

Que conforto traz a mobilização das pessoas que estão expostas no teu filme? Existe força, numa corrente do bem?

O que seria a "corrente do bem"? Nós evitamos visões dicotômicas, maniqueístas. Seria a "corrente do bem" uma espécie de proposição mais positiva? Seria o engajamento, o despertar da consciência e da luta pelos seus direitos? O filme mostra que as pessoas estão reagindo, reivindicando seus direitos, não estão passivas, mesmo com tanto sofrimento provocado. Estão se informando, agindo, participando. Há resistência, em movimentos do MAB (Movimentos dos Atingidos por Barragens) e MAM (Movimento pela Soberania Popular na Mineração), e das mulheres atingidas. Se é que se pode chamar de conforto, é a consciência que a sociedade está alerta, não está passiva, embora muitas vezes se trate de uma luta do tipo David contra Golias.

Trecho

A montanha pulverizada

"Esta manhã acordo e

não a encontro. Britada em bilhões de lascas

deslizando em correia transportadora

entupindo 150 vagões

no trem-monstro de 5 locomotivas

— o trem maior do mundo, tomem nota"

da obra de Carlos Drummond de Andrade 

 

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