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Longa aborda consequências da cultura predatória contra povos indígenas

O exemplo de resistência indígena e o contraponto, com o desmonte de hábitos, formam a narrativa do documentário 'De onde viemos, para onde vamos', penúltimo concorrente apresentado no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

A cineasta Rochane Torres não descola da ideia de que o futuro tem sido construído no presente. À frente do longa-metragem De onde viemos, para onde vamos, destaque de hoje na programação do 54º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, ela enfoca a condição de aldeia de povos originários. "De um lado, há negligência dos órgãos públicos; de outro, a resistência dos povos indígenas, exemplo de luta e integridade para toda população brasileira, que também tem muito a lutar", observa a mesma realizadora de filmes como A filha do Xingu (2018) e o registro subliminar de videoarte Antropofagia (2002).

Chaga na sociedade do homem branco, o racismo é elemento compartilhado com índios. "A sistemática de discriminação é um mecanismo para a destruição da cultura indígena pelo homem colonizador. O racismo prevalece hoje, porém os jovens indígenas têm superado o racismo ao preservar a cultura de origem", pontua Rochane. Entre tópicos estarrecedores, o suicídio entre índios é um dos temas em pauta no longa-metragem. "Acredito que o motivo pelo qual tantos jovens indígenas têm tirado a própria vida decorre do conflito de identidade, da falta de oportunidade, dos programas educacionais ineficientes e da discriminação da cultura indígena pelos brancos. Tudo isso determina a falta de sentido na vida", avalia a diretora.

De onde viemos, para onde vamos encampa olhar sobre o povo Iny (que habita a Ilha do Bananal, no Tocantins). A partir do tema, Rochane vê como uma honra lançar o filme na mostra competitiva do Festival de Brasília. "Um dos motivos pelo qual o povo brasileiro não conhece o Brasil está no fato de que povo brasileiro não assiste cinema produzido no Brasil. A nossa história está contada, discutida e simbolizada no cinema brasileiro. Isso me orgulha. Cinema é arte, por isso, resistência. Iny significa "nós mesmos", e nós, brasileiros, somos o que sabemos de nós", sentencia.

Encontrar o desconhecido foi motivação para a diretora, responsável ainda pela montagem e pelo roteiro do filme. "Foi como ver as folhas movendo com o vento pela primeira vez, a exemplo do que se vê no filme O lanche do bebê, dos irmãos Lumière. O encontro com o povo Iny foi como capturar uma imagem irrepresentável", comenta a diretora. Atraída mais pela 'proposta conceitual' de produzir arte, em cinema, até mesmo do que pelo "tema indígena", Rochane conta que o primeiro contato surgiu com a ida à Aldeia Santa Isabel do Morro junto à expedição Amazônia Visão. "Lá, eu conheci Curerrete Waritirre, um indígena extremamente engajado na preservação da cultura, tive um último encontro com o Bispo Pedro Casaldáliga, me apaixonei pela história da indígena Mavirá Kamaiura, fiz amizade com Idjaruma Kamaiura e fiquei amiga de toda a família", conta.

O norte para o filme veio do encontro com o líder Sakrowe Iny, a quem Rochane passou a admirar profundamente, depois de paulatina e cautelosa aproximação, entre idas e vindas à aldeia. Algumas cenas de ficção do filme De onde viemos... foram conseguidas depois da troca de ideias sobre a sétima arte junto ao cineasta Juanahu Iny, convidado para realizar registros audiovisuais. No filme, há um longo registro da vigorosa presença feminina de Narubia Werreria, que divide morada entre Palmas e a aldeia. "Narubia é uma grande força indígena. Ela é a esperança dos jovens Inys", sublinha a diretora.

Em De onde viemos, para onde vamos um dos pontos intrigantes é a figura do Koboi, elemento de explicação do cineasta Juanahu: o povo Iny surgiu do fundo do rio, e, entre todos, o Koboi é aquele que não conseguiu sair do fundo do rio. "Acredito que povo Iny resiste, realizando as festas tradicionais, contando sua história para assegurar a preservação da cultura original entre os mais jovens", pontua Rochane. Entre a resistência de manifestações como A Casa Grande — um ritual de transformação —, o filme registra também a festa de Aruanã, que significa "O espírito da floresta", e demarca o encontro do povo da terra que está vivo com os seus ancestrais que estão no céu. A eternidade de lideranças indígenas e aspectos da origem Iny guiaram a convivência de Rochane com o povo Iny.

De onde viemos, para onde vamos teve imagens capturadas entre 2017 e 2021. O longa-metragem foi filmado com orçamento próprio e finalizado com R$ 200 mil saídos do edital de Finalização do Fundo de Cultura do Estado de Goiás. Ainda que persista a música original de Juanahu Karajá, o filme aposta muito na realidade dos apartados culturais, na imagem dos índios grudados em tevê, celulares, calções e preceitos religiosos evangélicos. "Há muito da incorporação da cultura branca e da perda das formas tradicionais de vida. Percebo alguns dados como resultado de uma colonização e assimilação traumática da cultura branca. O distanciamento da cultura tradicional resulta em conflitos de identidade e mudanças na estrutura social", observa Rochane Torres.

A diretora atenta que processo e conceitos propostos conduzem De onde viemos, para onde vamos para algo que não é precisamente um documentário. "O filme também discute cinema, e essa é a parte que mais me encanta. Documentário também é cinema, e cinema encanta qualquer tipo de espectador. Cinema é arte do entretenimento. Mas não é só isso. Não pode ser. Eu exijo mais do cinema, consequentemente, mais do documentário", explica. No longa, Rochane discute a ficcionalização do real e a performatização diante da câmera, além de tratar da montagem como estrutura de roteiro. "Esse filme é uma captura de instantes flagrados, arquivos preenchidos de memória e cenas dirigidas", conclui a diretora.

 

Crédito:Paulo Rezende - A diretora Rochane Torres: imersão em cultura alheia
Ed Alves/CB - De onde viemos, para onde vamos: mescla de culturas no registro em preto e branco