Música

Livro conta história da música brasileira nos anos de chumbo

Os jornalistas João Pimentel e Zé McGill lançam o livro Mordaça, que trata da censura contra a MPB e de como os compositores conseguiram driblar o regime

Irlam Rocha Lima
postado em 28/01/2022 06:00
Caetano Veloso: um dos alvos da censura -  (crédito: AFP)
Caetano Veloso: um dos alvos da censura - (crédito: AFP)

A década 1970 foi marcada pelo cerceamento e pelos dribles espetaculares que os compositores aplicaram nos aparelhos de vigilância e repressão. O fio da meada dos chamados anos de chumbo é retomado em Mordaça - Histórias de Música e Censura em Tempos Autoritários, livro dos jornalistas e escritores João Pimentel e Zé McGill, que acaba de ser lançado pela editora Sonora. Os autores pretendem fazer uma ponte entre o presente e o passado, na abordagem de fatos ligados à música, naquele período de obscurantismo, aos quais em Vai passar, clássico de sua obra, Chico Buarque de Holanda chamou de "Página infeliz de nossa história".

Aliás, Chico Buarque foi um dos alvos preferenciais da censura oficial, principalmente depois de driblar quem queria calar sua voz, ao lançar num compacto, em 1970, o samba Apesar de você, que passou a ser considerado um hino pelos militantes políticos de esquerda. Esse fato é contado logo no segundo capítulo do livro, que traz em 365 páginas, histórias protagonizadas por artistas consagrados, de diferentes segmentos da MPB — de Caetano Veloso a Paulinho da Viola, de Gilberto Gil a Geraldo Azevedo, de Carlos Lyra a Evandro Mesquita, de Ney Matogrosso e Philippe Seabra.

Mordaça reúne em 335 páginas casos emblemáticos sobre o embate entre a música e a censura, a arte e o autoritarismo no Brasil. Recheado de histórias marcantes, surpreendentes, dramáticas e até engraçadas, mas narradas com uma linguagem leve, demonstram como os artistas foram perseguidos, mas também o que fizeram para burlar esses absurdos. "A história nos mostra que o maior inimigo de um governo autoritário é o pensamento. Por isso, os artistas, os verdadeiros artistas, são tão perseguidos conforme vemos neste livro", observa Zé McGill. "Acredito, no entanto, como nos disse Gilberto Gil, que a seta do tempo aponta para a frente, apesar dos 'guardas de fronteira'", acrescenta.

Para ilustrar a capa do livro, foi escolhida a imagem de um cartaz empunhado por um jovem, que usava mordaça, durante manifestação em 1968, contra a censura. "Quando vimos a foto, na hora identificamos o desenho como sendo do Ziraldo, por seu traço inconfundível. O Antônio Pinto, filho do mestre, confirmou a autoria e, juntamente com as irmãs Daniela Thomas e Fabrizia Alves Pinto, cederam a imagem para a capa", destaca João Pimentel.

Mordaça - Histórias de Música e Censura em Tempos Autoritários

Livro com 335 páginas de João Pimentel e Zé McGill.

Lançamento da Sonora Editora. Preço R$ 69,90

Entrevista / João Pimentel

Foi sua a ideia de escrever o Mordaça - Histórias de Música e Censura em Tempos Autoritários?

Fui procurado pelo meu editor, o Michel, o Michel Jamel, da Sonora, com a proposta de fazer um livro sobre os 50 anos do AI-5, em 2018. Como a editor, é voltada para música, o recorte já estava feito: a censura musical no período. Ele me sugeriu o Zé McGill para dividir a missão. Não o conhecia, fiquei apreensivo por termos estilos diferentes – ele escritor de ficção e eu cria da redação do jornal O Globo – mas o entrosamento foi imediato. Acho que por sabermos trabalhar bem em equipe. Penso que, de alguma forma, eu me embrenhei um pouco mais na cabeça ficcional e ele se concentrou para fazer o texto mais jornalístico possível. Vejo uma harmonia nos nossos escritos. O tempo era curto para realizar o livro na data pretendida, mas o obscurantismo do governo atual tornou o trabalho ainda mais necessário. Diria que o livro saiu na hora certa, neste cenário macabro da pandemia, mas com a sociedade se mobilizando para reverter esse quadro.

Houve divisão de tarefas?

Houve, sim, uma divisão natural dos capítulos. Alguns dos artistas eu tenho alguma intimidade como o Ivan Lins, a Joyce, a Beth, que me deu uma das suas últimas entrevistas, talvez a última, e o Macalé, esse meu amigo pessoal e que já foi personagem de um documentário de minha autoria. O Zé teve a grande sacação de seguir adiante com a turma do BRock, com o Bnegão, já que as entrevistas nos trouxeram, naturalmente, para os tempos atuais. O resto foi pintando. Alguns artistas são difíceis mesmo de entrevistar, como Chico, Caetano, Gil. Mas as coisas aconteceram no tempo certo.

Quanto tempo levaram para obter os depoimentos dos artistas?

As primeiras entrevistas foram feitas em 2018, a maioria em 2019 e, uma ou outra, em 2020 e 2021. Na pandemia, demos uma parada porque tudo parou. O mercado editorial ficou ruim, as livrarias fechadas. Por fim, terminamos o livro já com a possibilidade de um lançamento presencial aqui no Rio entre uma delta e um ômicron. Incomodava-me a ideia de lançar um livro sem a presença dos amigos. Hoje, por exemplo, não lançaríamos...

Essa foi a parte mais complicada?

Sempre é. A demora em conseguir entrevistas fundamentais gera ansiedade. Mas acho que 90% da lista inicial foi cumprida. Não conseguimos Rita Lee, Milton Nascimento, mas outras histórias boas foram surgindo.

Na sua avaliação, quais foram as histórias mais relevantes ou impactantes?

Acredito que todas as histórias têm relevância. Vejo isso por comentários de amigos. Alguns se encantam com o capítulo do Chico, outros com o do Geraldo Azevedo. Independentemente das histórias, da dramaticidade do ocorrido, gosto muito do último capítulo, o que escolhemos para fechar o livro, o do Gil. Primeiro por amar o artista, o ser humano divino, o orixá Gilberto Gil; depois pela visão otimista dele diante da realidade, a constatação de que o obscurantismo, o negacionismo, o reacionarismo e outros ismos do mal sempre existiram e existirão, mas não são suficientes para segurar os anseios, as lutas sociais, de gênero, de raça, enfim, a busca das liberdades individuais.

Do que ouviram, houve depoimentos que soaram inéditos?

Temos histórias inéditas como as do Genílson Barbosa, que surgiu na entrevista do Zé com o Rildo Hora, a do Ricardo Vilas, a da feitura da Canção da despedida, de Geraldo Azevedo, a história do Caetano com o censor que havia sido seu professor. Outras, eu não sei precisar. Eu nunca tinha ouvido a história de Sinal fechado, do Paulinho da Viola. Ele começou dizendo que não sabe se a história aconteceu ou se foi um sonho. As histórias da turma do rock também eu não conhecia, a não ser do Léo Jaime com a censora Solange e a da Blitz. Mesmo assim, são historias que pouca gente lembra ou conhece. Acho, também, que o distanciamento temporal dos acontecimentos traz novas lembranças, visões diferentes do ocorrido. E a ponte entre o passado e o presente é o que considero fundamental, atual e inédito.

Os censores comeram mosca em relação ao LP Sinal fechado, em que Chico Buarque lançou com o pseudônimo de Julinho da Adelaide?

Não diria que comeram mosca, nesse caso. Foi mesmo o Chico quem deu um drible bonito neles, criando o pseudônimo. Porém, pouco tempo depois, os censores descobriram que Julinho da Adelaide era o Chico, já que um jornalista publicou isso no Jornal do Brasil. No entanto, sim, a censura comeu várias moscas, como por exemplo no caso de Apesar de você.

 

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