Nesta quinta-feira, aos 91 anos, Elza Soares partiu deixando um legado admirável não só na música brasileira, mas também na luta contra o racismo. Eleita pela BBC de Londres ‘A voz do milênio’ na virada de 1999 para 2000, a cantora sempre será uma forte representante do ativismo negro no país, conhecida por sempre apoiar mulheres negras artistas e lutar contra qualquer forma de preconceito.
Nascida em 23 de junho de 1930 na favela de Moça Bonita, atualmente conhecida como Vila Vintém, na zona oeste do Rio de Janeiro, Elza Gomes da Conceição teve uma vida intensa de luta pela sobrevivência. Aos 12 anos foi obrigada a se casar com um homem 10 anos mais velho, engravidou pela primeira vez aos 13 anos e, depois disso, teve mais três filhos, dos quais dois morreram de fome, já que Elza e o então marido não tinham condições financeiras.
Durante o casamento arranjado, Elza sofreu inúmeras violências físicas e sexuais. Aos 21 anos ficou viúva. Cerca de 10 anos depois, conheceu o jogador de futebol Garrincha, com quem teve uma paixão e um relacionamento conturbado, sendo, mais uma vez, vítima de violência doméstica. Além de todas essas agressões, Elza também foi perseguida pela ditadura militar (1964-1985). Esses foram alguns dos fatos que fizeram a cantora do milênio se tornar um ícone da luta feminina.
Um dos discos que marcaram a trajetória da cantora, A mulher do fim do mundo, retratou a realidade que ela viveu e outras milhares de mulheres ainda vivem no Brasil. Na música Maria da Vila Matilde, Elza fala sobre a história de uma mulher que não aceita mais as agressões do companheiro: “Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180, vou entregar teu nome e explicar meu endereço. Aqui você não entra mais, eu digo que não te conheço e jogo água fervendo se você se aventurar”, cantou. Em outro trecho a sambista interpreta: “cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”.
A voz da resistência
Durante toda a carreira, Elza usou as cordas vocais para cantar a realidade não só das mulheres, mas da população negra. Uma das canções que ficaram mais conhecidas na voz da artista foi “A carne”. De autoria de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti, Soares pediu permissão diretamente ao, também cantor, Seu Jorge para regravar a música ao seu estilo.
Após receber a benção do autor, Elza incluiu o single no álbum “Do Cóccix Até o Pescoço” e, em 2002, o Brasil ouviu ela exclamar: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. No videoclipe com duração de quase 5min, a artista retratou a realidade do povo negro. “Que vai de graça pro presídio, e para debaixo do plástico. E vai de graça pro subemprego, e pros hospitais psiquiátricos”, retratou.
Em entrevistas, Elza sempre assumiu um posicionamento contundente quando o assunto é racismo. “Já passei por situações difíceis. Uma vez, quando cheguei em um hotel para fazer o check-in, me disseram que não havia reserva em meu nome e não me deixaram ficar. Mas eu sabia que havia vaga. Foi discriminação mesmo”, contou em um depoimento dado à jornalista Sabrina Brito e publicado em 2020 na revista Veja.
“Desde a minha juventude, a situação dos negros não melhorou nem um pouco no Brasil. A vida ainda é complicada para as minorias, continua o mesmo sofrimento de sempre”, afirmou. “O racismo ainda está aí e precisa ser combatido. É a dura realidade que devemos enfrentar”, garantiu. E foi assim que ela passou a vida, lutando.
"Acho que o primeiro passo para transformar as coisas é continuar lutando, não desistir. Por isso faço questão de ser ativista. É parte da minha personalidade. Eu brigo, grito, vou à luta. Pelos gays, pelos negros, pela juventude, pelas mulheres, por quem não é ouvido.<br>" Elza Soares
Apesar de todos os obstáculos, Elza garante que não se deixou vencer pelo racismo. “O racismo não me derrubou”. Ela, que partiu em paz, dentro de casa, de causas naturais, cantou até o fim e, já perto do encerramento da trajetória, afirmou que a carne negra já não é a mais barata do mercado. “Vale uma tonelada", expressou categoricamente ao recomendar que foi-se o tempo em que cabia dizer que o negro não tem valor.
Apoio
Talvez por saber o quão difícil é uma mulher negra subir na vida e receber reconhecimento, que Elza apoiasse tanto as companheiras do mundo da música. Em entrevista ao Correio, certa vez, ela afirmou que faltava contar a todos como a caminhada foi árdua. “Enfrentando o preconceito, fingindo que não fedia e passando por cima de tudo isso. Eu podia estar trabalhando muito mais, ser mais reconhecida neste país, como tive o reconhecimento da BBC de Londres, como a cantora do milênio. Talvez, se fosse uma cantora loira, seria mais reconhecida. São poucas as negras que você vê no país cantando”, disse em outubro de 2009.
Recentemente a sambista demonstrou apoio à atual participante do BBB22, Linn da Quebrada, que é mulher trans e negra. Ela também vibrou quando viu que Maria, outra cantora de pele escura, estava no reality mais assistido do Brasil. “Quando eu canto, eu troco o bico, a pele e a carne, a carne negra que é linda e maravilhosa. E isso vale para qualquer mulher. A gente fez tanta coisa para chegar a algum lugar, queimou sutiã para ter direitos iguais. Se nós, mulheres, não lutarmos, isso não vai ter valido de nada. Temos que fazer alguma coisa”, opinou em 2014, em outra entrevista ao Correio.
Prêmios
Por todas essas representações, Elza ganhou incontáveis prêmios. Prêmios da música brasileira, Prêmio Multishow, Grammy Latino, WME Awards, entre outros. Em 2016 foi reconhecida no Troféu Raça Negra, por contribuir e exibir os avanços para os afro-brasileiros.
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