Livro

Viola Davis fala sobre superação e carreira em livro autbiográfico

Com a carreira construída na base da perseverança, vencidos vários obstáculos, atriz Viola Davis resume a vitoriosa trajetória na autobiografia 'Em busca de mim'

Ricardo Daehn
postado em 23/08/2022 00:01 / atualizado em 23/08/2022 10:52
 (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
(crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Foi a partir de 25 dólares pagos a uma parteira que Viola Davis veio ao mundo. O pai, tratador de cavalos, que trazia carga de ódio atrelada a alcoolismo, sistematicamente, feria a mãe de Viola que exercia contenção em "jorros de sangue". "Imagine seu pai espancando sua mãe com um pedaço de madeira, batendo com força nas costas dela", descreve, em determinado trecho da autobiografia. Na vida, a premiada atriz de How to get away with murder segue penando para demover segredos e barreiras que incluem um irmão capaz de violentar as irmãs, situações que a impediam de aderir protocolos sociais e a mácula de pequenos roubos, numa época de luta brava em que a "moralidade ia para o espaço". Pelo que relata na autobiografia Em busca de mim, atuar veio como "fonte de cura". De tanto interiorizar vergonhas, Viola constituiu a guerreira que é, pelo que descreve.

A retirada de mais de 30 miomas, a convivência com alopecia areata, o drible de incêndio, o ódio à negritude destilado por cabo-verdianos e até mesmo por uma brasileira de quem Viola não esquece avolumam os percalços da narrativa. "Lembro-me de passar o dia inteiro na sala de estar no clima abaixo de zero, todos juntinhos, mijados, congelando, observando a minha mãe", pontua a atriz, desde os oito anos de idade, na defensiva. "A invisibilidade do combo formado pela negritude e pela pobreza é algo brutal", reitera a autora, num retrospecto de vida.

Nos arredores do CBGB, bar novaiorquino de motociclistas, e palco para carreiras como as de Patti Smith e Blondie, já com parte das vivências em Central Falls enterradas, Viola galgou a trilha da geração de baixa renda que despontou no ensino superior. Seleções vieram: entre 2200 pessoas, Viola ficou entre 30 finalistas, num trampolim que a encaminharia para a renomada Julliard, dotada de uma estrutura vocacionada ao poder da transformação. Entretanto, os moldes rendiam ajustes que preconizavam atores brancos. A cor de Viola tendia ao púrpura (do texto de Alice Walker, encenado, de modo recorrente). Futura expoente das adaptações do dramaturgo August Wilson para a telona (em filmes como A voz suprema do blues e Um limite entre nós), Viola, ao longo do texto, faz valer o ponto de virada enunciado pelo autor da peça Seven guitars (que ela encarou nos palcos): "O homem tem planos, mas Deus? Ele também tem".

Criada entre muitos pequenos desassistidos pelo excesso da jornada dos pais nas plantações da Carolina do Sul, Viola, no livro, exorciza as precisas memórias "imortais e imperecíveis". Junto à jornada pessoal que, como ela diz, se assemelha a um filme de guerra, chegam as conquistas e exemplos da intérprete de diretores consagrados como Todd Haynes e Steven Soderbergh. Se relata "trauma, mijo, merda e argamassa misturados com memórias", a dama poderosa de How to get away with murder conta do resplendor de ver, na tela de tevê, a pioneira musa do cinema negro Cicely Tyson. De certa forma, já se acendia a fagulha de frases que, futuramente, Viola aprenderia em viagem à África: kara be e Kara jon — conceitualmente, expressões de empatia: "Estou aqui" e "eu te vejo".

A identidade e o rastreamento presente no título do livro — Em busca de mim —, levam Viola a enfatizar a antiga versão de si, pouco corajosa, insegura e carente de terapia, aos moldes do amigo Will Smith, que havia lhe confidenciado: "sempre serei o garoto de 15 anos que levou um pé na bunda da namorada". Os traumas de Viola parecem mais fortes. Até compartilhar com Deus uma lista de qualidades esperada para o pretendente (amor que viria a consolidar com o ator Julius Tennon), Viola se via como alguém sozinha, "mas não solitária". Quis o destino que Viola encontrasse o "homem negro e grande" que "fosse ex-atleta, de preferência jogador de futebol americano". Tennon e Viola viriam a adotar uma criança, numa estrada que amenizou a experiência da atriz com um aborto. Como ela relata: "...eu acabara com uma vida, e eu definitivamente, sem dúvidas, sabia que era uma vida... que eu trocara pela minha".

Reavivada

Relatada por Viola, a infertilidade, em comum, de mulheres que integravam um grupo de comediantes, na África, impressiona no livro. Da revigorante viagem — em que se reconcilia com passado de preconceitos e abusos — a autora pontua a África como "o parquinho de Deus". Na Gâmbia, as explosões de cores como laranja, azul e roxo se mesclam a culturas, línguas e culturas, entre as quais, uolofe, diola, mandinga e sosso. A riqueza é encerrada num cântico que Viola nunca esquece: "Eu não vim aqui por comida. Minha barriga está cheia. Eu não vim aqui por comida. Vim por muito mais".

Não se contentar com pouco é característica patente da consagrada atriz que celebrou a virada de carreira com a "sexualizada, sociopata e inteligente" personagem de How to get away with murder, que lhe deu o Emmy de melhor atriz, em 2015. O próprio reconhecimento passa pelo grau de exigência da atriz que já foi convida de honra, como presente de casamento, para a mansão italiana de George Clooney. Viola se diz de uma época em que "não havia palpites de influenciadores com pouco conhecimento do fazemos enquanto artistas". Também não falava alto o "apelo dos vendedores de álbuns" como enxerto no elenco de produtos audiovisuais. Na elaboração de "cada pedacinho de sonho" que encaminhou Viola para a Broadway, depois de anos convivendo no apartamento 128, infestado por ratos, já ao fim do livro, a narradora cita Anne Lamont, figura de apoio para celebridades, e que parece uma súmula do que Viola se estabelece, frente ao leitor: "Você pode deixar algo para as pessoas ou pode deixar algo nas pessoas".

Viola se impõe como astuta observadora de bastidores de produções das quais tomou parte como Histórias cruzadas, filmado em Greenwood (Mississippi), berço para os Conselhos de Cidadãos Brancos, pilares para o perpetuar das leis de Jim Crow que tentaram frenar o estancar da segregação racial, em meados dos anos de 1950. A exemplo da amiga revelada nas filmagens de Dúvida, Meryl Streep, humilde de tudo e "100% nada intimidadora", Viola termina a narrativa de Em busca de mim, saciada e de forma serena: "Tudo o que tenho sou eu".

Em busca de mim

De Viola Davis. Autobiografia editada pela Best Seller, 266 páginas. Preço médio: R$ 39,90.

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