Jonathan Ferr gosta de testar os discos em formato de show antes de lançá-los. No palco, com a banda completa e o público presente, ele consegue ter uma ideia do diálogo que a música é capaz de estabelecer com os ouvintes. É isso que o compositor está preparando para o Cerrado Jazz Festival. Ferr abre o evento nesta sexta-feira (19/8) em um lineup que tem ainda Tamara Tramell, Que onda e Iara Gomes Quinteto. Ao palco montado no Eixo Cultural Ibero-Americano, Ferr vai levar Liberdade, seu terceiro disco depois de Trilogia do amor (2019) e Cura (2020), responsáveis por colocar o nome do pianista de Madureira no radar da cena de jazz brasileira.
Ferr, 35 anos, começou a tocar piano ainda menino e, adolescente, pegava ônibus e percorria mais de 20 quilômetros para assistir aos shows de jazz na zona sul do Rio de Janeiro. Soube ali o que queria fazer para o resto da vida, mas também se deu conta de que era preciso tirar o gênero do pedestal e torná-lo menos elitizado. A mistura pareceu um bom começo e, a partir da mescla de sons orgânicos com eletrônicos, o pianista construiu um repertório único na sonoridade do jazz brasileiro. "Eu não faço música para entreter, faço música pra conectar. Não é conectar comigo, é consigo mesmo", avisa.
Formado na Escola de Música Villa-Lobos, onde estudou com bolsa, e natural de um bairro que é berço da Portela e do Império Serrano, o músico aposta na fusão de todas as referências para criar uma cartela sonora tão rica quanto a música brasileira. "Acho que a música instrumental se basta em si mesma porque tem o projeto de ser uma música subjetiva, cada um vai escutar e mergulhar nos seus próprios anseios. Cada um vai sentir, ter uma memória específica", diz. "Vejo muitas pessoas falando em levar música de qualidade para pessoas que não têm acesso, mas é um discurso muito elitista, como se ali não tivesse tivesse cultura." Ferr cita o funk, ao qual ele atribui a qualidade de libertário e emancipador, portador de uma mensagem que o Brasil não quer ver, e o samba, outrora também discriminado. "E trago minha música para somar, não para competir. Quero criar novas narrativas, talvez eu esteja só iniciando uma história que outra pessoa vai continuar depois. Gosto de falar de urban jazz, a música que proponho é esse mix do jazz, hip hop, eletrônico, rap."
Popularizar o jazz é uma vontade desde a época em que o compositor pagava caro para assistir aos shows na zona sul. "É uma música que, quando chega no Brasil, se elitiza, vai por um caminho onde as pessoas têm menos acesso, com valores exorbitantes de ingresso, em lugares onde se toma bebida cara. O jazz é sofisticado, mas não está nesse lugar de só ter um clube caríssimo. É uma música tão potente, mudou minha vida e a forma como eu percebia o mundo e as coisas ao meu redor", conta. Ferr fala em uma dimensão espiritual e é um pouco disso que ele traz em faixas como Sino da igrejinha, que abre Cura, Caminho, com participação de Viviane Mosé, e Esperança, na qual Serjão Loroza declama sobre racismo e violência.
Com uma estética afrofuturista no figurino, mas também nos visualizers que ele mesmo dirige para criar narrativas que vão além das composições, Ferr acredita na música como um canal para impactar o futuro e promover mudanças. "O afrofuturismo não é um estilo musical, é um modus comportamento. Pensar de forma afrofuturista é pensar de forma simples: o que faço hoje pode impactar o futuro, porque o futuro é agora", explica. "Eu, sendo um pianista preto que saiu de Madureira, que conseguiu fazer o trabalho chegar a tantos lugares, é algo futurista."
Com afeto
A quarta edição do Cerrado Jazz Festival ocupa o canteiro do Eixo Ibero-Americano até domingo com artistas como Spok Quinteto, Bradixie Band, Ney Rossauro, Dylan Triplett&The Simi Brothers e Face Quarteto. Por outras edições do festival, realizado em locais como Museu Nacional da República e Caixa Cultural, passaram nomes como Amaro Freitas, Paula Zimbres, João Bosco, Ellen Oléria e Carlos Malta.
Este ano, o festival recebe um total de 12 atrações e o slogan Afeto como recomeço, com uma homenagem ao saxofonista Spok. "A gente vem este ano com esse slogan porque estamos vindo de dois anos sem poder realizar eventos, festivais, e, num momento em que a cultura está sendo tão criminalizada, nada melhor que colocar esse afeto na frente", explica Lorena Oliveira, diretora e curadora do Cerrado Jazz. "Nossa proposta é celebrar grandes encontros em que você pode ouvir a música na sua plenitude, é um espaço acessível e democrático. É um evento que tem essa pegada de democratizar o acesso à cultura, então é todo aberto ao público." Todos os shows são gratuitos e a produção do evento criou espaços de acessibilidade para facilitar a circulação de pessoas com mobilidade reduzida.
Além de Jonathan Ferr, são destaques no line up a cantora norte-americana Tamara Tramell, especializada em soul, e o Dylan Triplett&The Simi Brothers. Ambos estão em turnê pelo Brasil e passam em Brasília como convidados do Cerrado Jazz. Os brasileiros Vanessa Moreno e Salomão Soares também integram a programação com um show inédito. Um chamamento aberto para selecionar dois grupos do Distrito Federal incorporou ao line up a pianista e compositora Iara Gomes Quinteto e a Bradixie Band. Eles dividem a programação com outros quatro grupos da cidade. "O Cerrado Jazz também quer proporcionar intercâmbio entre os artistas", avisa Lorena.
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