Cinema

O imperador D. Pedro I revisitado pelo olhar da cineasta Laís Bodanzky

Controversa, a figura de Pedro I é revisada pelas lentes da diretora Laís Bodanzky, no longa "A viagem de Pedro", que estreia hoje e contempla o machismo e a releitura das condições dos africanos no Brasil de 1831

Ricardo Daehn
postado em 01/09/2022 06:00
 (crédito: Biônica Filmes)
(crédito: Biônica Filmes)

Foi pelo que chama de observação em buraco da fechadura, que a premiada diretora Laís Bodanzky apresentou imagens de manicômio (em Bicho de sete cabeças) e de salão de baile (Chega de saudade) que, para muitos, acusavam autenticidade extrema. Agora, conduzindo o longa A viagem de Pedro (atrelado à figura de D. Pedro I), Laís abraçou a provocação de  contestar registros históricos lastreados em narradores detentores de poder político e econômico. "A história oficial é muito parcial. Para o filme, não inventamos coisas do zero. Não foi tudo um grande delírio. No registro do filme, D. Pedro estava cercado de serviçais, e não de escravos", demarca a diretora.

Na condição de ex-imperador, muito longe da unanimidade no Brasil, e anos depois de proclamar a independência do Brasil, numa fragata inglesa, Pedro se vê na condição de traidor em Portugal, pela paleta encampada em A viagem de Pedro, que tem por cenário o Oceano Atlântico de 1831. Observar o bicentenário da independência não como data a ser festejada, mas como vetor de reflexão foi a proposta da diretora. "Nas pesquisas, a viagem, em si, no barco, não tem documento histórico nenhum. O próprio diário de Dom Pedro se encontra trancado no Museu Imperial", conta Laís Bodanzky.

Na observada "salada cultural do Brasil da época", a Inglaterra destilava interesses econômicos em questões do abolicionismo e a França servia de moldes aos protocolos de palácio da corte. "Complementar o roteiro com literatura (de revisão) atual é muito importante", defende Laís, que conta ter recorrido a registros de escrivães de publicações como Achados e perdidos da História. A injeção de teor feminista no longa Como nossos pais (2017) ajudou o ator central, Cauã Reymond, a acionar a diretora para o novo projeto. "Foi interessante trazer camadas de desconstrução do personagem, sob reflexões, por exemplo, de um racismo estrutural. Nos personagens de ficção, há mais liberdade para se imaginar. Na criação de projeto do filme, colocamos as mãos em todos os livros que conseguimos, e Dom Pedro sempre era retratado de formas distintas e contraditórias", enfatiza o também produtor Cauã Reymond.

Tendo o roteiro de Bodanzky como guia, Reymond enfatiza ter gostado do cerco à época em que o imperador foi expulso do Brasil. "Ele estava completamente frágil: trouxemos elementos como a epilepsia, a sífilis, a decorrente impotência sexual e as alucinações carregadas no percurso de uma viagem. Com evidências de sociedade patriarcal, machista e opressora de gênero e de raça, o filme traz até brecha para o empoderamento feminista, no papel de Isabél Zuaa, a Dira da trama. "Ela conduz Dom Pedro ao prazer novamente, através da aula que dá de como agradar a uma mulher de forma diferenciada", observa o ator. Tudo, no filme, destoa de um período em que o menino Cauã, ainda na terceira série primária e sem saber que seria ator, deu vida a um Dom Pedro "muito heroico e macho".

Processos criativos e artísticos, explicitados por Isabél Zuaa, convocaram a subversão da "linguagem de convenção" que, na maioria das vezes, destaca um imagético opressor. "A gente não caiu de uma árvore; temos história de vida", celebra Dirce Thomas (intérprete de Benê), que convoca diretores a abraçarem olhares étnicos e antirracistas. "A época do filme era um período em que o chicote estalava. Nós (negros) não pedimos para vir (para o Brasil). Nós não viemos como emigrantes", pondera. Numa fala consciente, Dirce pediu para não haver chicote em cena. "Trabalho com a questão de o negro levantar a cabeça. Venho do CPT (Centro de Pesquisa Teatral) do Antunes Filho, e, com a Laís, que tem valores do CPT, apostamos em personagens empoderados, altivos e que tragam dignidade", explica Dirce Thomas.

Vivências transcorridas, mas não narradas pela história, e que circundaram Dom Pedro, chamaram a atenção de Laís Bodanzky, que, no filme, expõe a convivência do amontoado de origens, línguas e religiões. "Era um Brasil em que a maior parte da população (também) era preta", destaca a diretora. Uma realidade de vida permeou a atuação de Denangowe Calvin, o Tigre da trama. "Funcionou como autoterapia, me ajudou como ator e pessoa. Tive dificuldades de separar atuação das emoções reais que eu mesmo viva", ponta o ator congolês.

Numa licença poética, o filme coloca D. Pedro integrado a crenças do candomblé. "Ele não gostava dos protocolos, era informal. Nos livros, ele é descrito como alguém que gostava de ficar na cozinha, de conversar com os serviçais, de andar de pijama e descalço. Ele tinha uma proximidade, com certeza, ao menos nos relatos de pessoas pretas", demarca Bodanzky. A vertente de apoio religioso fora da Igreja católica, que já não reconhecia Dom Pedro, traz matiz interessante ao longa A viagem de Pedro. "Por todas as características dele, D. Pedro faria essa entrega (de crença) do filme. Acho educativo para o Brasil de hoje incorporar isso. Para o Brasil que não respeita que nosso país seja laico é também uma cena política (a crença de Pedro na religião africana)", comenta a diretora.

 


 

 


A "ideia absurda" de trazer o coração de D. Pedro ao Brasil de 2022 desemboca, na visão da diretora, em "uma apropriação da história de forma ufanista, e tem que ser questionada". No filme, Luise Heyer interpreta Leopoldina; Domitila de Castro ganha interpretação de Rita Wainer e Victória Guerra dá vida a Amélia, a segunda esposa de Pedro. "Ela (Amélia) lutou para mostrar que era culta e inteligente e que teria força para cuidar dos filhos e do imperador, mesmo com a evidente masculinidade tóxica dele", observa Victória Guerra. Em apartes à viagem pelo Atlântico (durante dois meses), em que "visitou seus demônios", pelo que avalia a diretora, Pedro confrontará o irmão mais novo, Miguel (Isac Graça), prestigiado na corrida pelo trono de Portugal. "O filme tem as proporções quase punk de quem ama. É uma obra que abala as estruturas do conservadorismo. Para mim, que venho de família com utopia democrática, regada a valores de fraternidade, de igualdade, de liberdade e de comunidade, no papel, tive que deixar de lado a visão ética. Busquei inspiração na "gente nojenta" de extrema direita", conclui.

 

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 (crédito: Divulgação)
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O curta, produção independente dirigida e escrita pelo roteirista brasiliense André Luiz, traz um questionamento sobre o luto. A trama conta a história de um rapaz (Iury Persan) que, após uma grande perda familiar, precisa lidar com novos medos e passa a não ver mais sentido na vida. Também em cena, aparece a mulher (Gabriela Rabelo), que compartilha com o rapaz os silêncios e as tensões da narrativa. O curta possui 20 minutos de duração e foi filmado em Ceilândia, Brasília.

De graça

 (crédito: Divulgação)
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» O auto da

boa mentira

Hoje, às 19h,
no Cine Brasília

O Cine Brasília faz hoje uma sessão gratuita de O auto da boa mentira, filme de José Eduardo Belmonte inspirado no clássico de Ariano Suassuna. O longa estreou nos cinemas em maio de 2021 e tem no elenco Leandro Hassum, Rocco Pitanga, Nanda Costa e Cássia Kis.

Na releitura de Belmonte, quatro histórias têm como ponto central a mentira. Em uma delas, subgerente de recursos humanos é confundido com uma celebridade. Em outra, a narrativa gira em torno do preconceito e uma terceira traz um estrangeiro que mente sobre um assalto para evitar uma festa. Na quarta história, o universo circense é o ponto
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