Antigo professor de jornalismo e com formação de doutorado em cinema pela ECA da USP, o cineasta João Batista de Andrade, aos 83 anos, não consegue se dissociar da política e do audiovisual. Abastecer o público com exemplos das forças sociais e econômicas agindo sobre a história está entre os focos da série 100 anos de cultura e conflitos, atração recém-integrada à programação do SescTV (sesctv.org.br/100anos). Para além do exame de clássicos marcos como A Revolta dos Tenentes, a Coluna Prestes e a Guerra do Paraguai, as reflexões alcançam a atualidade. O desafio de síntese ultrapassa os moldes da série Panorama do Cinema Paulista, realizada há mais 50 anos.
"Aprendi muito, apesar de sempre ter me interessado, particularmente, pelo Brasil do período da primeira metade do século 20 esticada até 1964. Com intelectuais e pesquisadores que exibem sempre um profundo conhecimento sobre esse período, a série traz diversas facetas da história", comenta João Batista, em entrevista ao Correio. Em 16 episódios, cada um com cerca de 25 minutos, estão compactados temas da política nacional, transcorridos ao longo de décadas, além de investidas por assuntos culturais (com destaque para Rádio Nacional e cinema sonoro).
Autor de documentários como Travessia (2009), em torno da ditadura militar, e de Céu aberto, produção de meados dos anos de 1980, que encampou o andamento das Diretas Já até o trágico registro da morte de Tancredo Neves, o mineiro João Batista sempre cultuou as escolhas forjadas desde a formação cineclubista, em que pulsaram obras nutridas em meio ao movimento sindical e um ideal militante, com nova dimensão para protagonistas de longas como O homem que virou suco (1981), O tronco (1999) e Doramundo (1977), tudo numa visão certamente influenciada pelas ações junto à União Estadual dos Estudantes.
Encarar pressões políticas, demissão e até censura (entre uma das proibições esteve a circulação do curta Liberdade de imprensa) foram obstáculos aos mais de 60 anos dedicados ao audiovisual. Em 2017, João Batista chegou a ser ministro interino da Cultura, anos depois de feitos como a busca da distribuição de cinema nacional, via criação da Reunião de Produtores Independentes, e ainda de o cineasta investir na produção de Vlado: 30 anos depois (2005), um documentário sobre o assassinato do amigo Vladimir Herzog, um dos criadores do telejornal Hora da notícia (em que João Batista trabalhou, durante a ditadura militar).
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Entrevista // João Batista de Andrade, cineasta
São muitos os planos que nortearam o país; entre eles o Cohen que está na série 100 anos de cultura e conflitos... Em qual dos planos nacionais o senhor colocou mais fé?
Como cineasta, ao dirigir um documentário, eu me interesso por todos os lados da história. Mas a série mostra o crescimento da tensão política desde o início do século 20. E um pouco antes, com a polêmica e tardia libertação dos escravos e a Proclamação da República, de qualquer forma o Brasil sai do estancado século 19 para um século 20 carregado de tensões e de buscas de hegemonia. Buscam espaços os operários, muito influenciados pelo anarquismo. Buscam espaços os representantes da oligarquia, principalmente a paulista, com a força do café e um começo de industrialização. Buscam forças os tenentes, envolvidos em ideias algumas delas até revolucionárias, como na Coluna Prestes. E buscam espaço os artistas, ansiosos por sair da modorrenta sociedade do século 19 e abraçar o Modernismo que nada de braçada na Velha Europa, principalmente a França. Ali estavam as sementes das forças que enfrentaram o desafio de construir uma nação.
Há muitos contrapontos e conflitos de ideias, percepções, na série? Acredita que as pessoas têm desaprendido a ouvir o outro?
Acho sim. Vendo a série, se verá, de forma clara, a vida de conflitos que dominam a história brasileira do século 20. Há um processo de busca de História, uma busca cultivada por múltiplas forças, todas às voltas com suas próprias histórias, sem um traço nitidamente dominante. Desde a afirmação do universo urbano, o domínio de uma oligarquia ainda ligada ao café, de um operariado com suas greves, tenentes revoltosos, revoluções... Basta lembrar que em 1922, pouco mais de 20 anos do fim da Monarquia, e da escravidão, pelo menos três movimentos marcaram fortemente a vida política e cultural brasileira: a criação do Partido Comunista do Brasil (depois "Brasileiro"), a Revolta dos Tenentes no Forte de Copacabana e a Semana de Arte Moderna.
Jean-Claude Bernardet está na série... Como percebe a relevância dele? Que outros expoentes da cultura integrados à narrativa o senhor admira?
Jean-Claude é um velho amigo e um dos guias de minha geração de cineastas, como um intelectual moderno e apaixonado pelo cinema. Muitos outros, como Paulo Emilio Salles Gomes, também influenciaram fortemente a formação moderna de nosso cinema. Minha ligação maior está com os cineastas que iniciaram o movimento do Cinema Novo, a partir do início de 1964. Um movimento de uma riqueza incrível que nos fazia lembrar justamente da Semana de Arte Moderna, de 1922. Mas posso dizer que as idéias de Jean-Claude Bernardet não envelhecem.
O senhor já esteve à frente do ministério cultura. Conhecendo a estrutura, por experiência, quais as maiores perdas com o período de inoperância dele?
O problema maior, como sempre que há desconstruções, é o efeito horizontal, desarticulando todos os braços do MinC. E destruindo a ideia de uma ação em apoio ao desenvolvimento e democratização da cultura brasileira. Não acredito que os responsáveis por esse desastre não tivessem noção da importância de uma política cultural, em particular num país em desenvolvimento e deficiências graves de acesso à cultura, ao cinema, ao teatro, música e artes plásticas. E não acredito também que não soubessem que o desenvolvimento de uma sociedade depende extraordinariamente do acesso e da criatividade no mundo da cultura. Destaco a presença de novos valores da cultura brasileira entre a juventude e os movimentos de periferia.
Reacender históricos episódios problemáticos nas artes estimula violência ou apenas reflexão e reconsiderações?
A política brasileira anda tomada pela falsidade. Parece que tudo é falso e que a maioria dos próprios políticos se vê como cegos quanto ao que interessaria ao povo e de olhos abertos ao que lhes interessa. Há um desafio enorme, reconstruir a ideia de "verdade", "justiça" , pois a República foi tomada pelo retrocesso democrático. É preciso que as pessoas entendam o jogo político, entender os desafios, as derrotas, os sonhos. Para mim, a isso deve servir o cinema e a tevê.
100 anos de política e de golpes: quais são os examinados pela série? O momento recente, vivido pelo Brasil, foi mais crítico sob que aspectos?
Golpe da Proclamação da República, em 1889, para começar... a que se segue um período de muitos conflitos, emergência de novas forças sociais e políticas, até a Revolução de 30, liderada por Getúlio Vargas, quando finda a fase de governos militares e oligárquicos. Pode-se dizer que Getúlio retornou à ideia de golpe, golpeando a si mesmo em 1937, no fim legal de seu governo, criando o chamado Estado Novo, uma ditadura que custou muito à ideia de liberdade e aos líderes democráticos de todas as cores. E que durou até 1945, com o final da Segunda Guerra Mundial, com o crescimento das ideias de democracia vitoriosa.
Como estão mostrados tópicos fulgurantes como o escravismo e o tratamento reservado a indígenas, no material produzido?
As duas questões estão entre os tópicos bem desenvolvidos. Inclusive com participações fortes de representantes de descendentes afro-brasileiros e indígenas. São discutidas as questões críticas do processo de integração dos descendentes afro-brasileiros e também a questão indígena com toda sua diversidade e seu espírito crítico. Tratamos de questões como demarcação de terras, amor às próprias histórias e costumes, ataques covardes de garimpeiros e interessados nas terras indígenas. Ailton Krenak tem uma bela participação em entrevista e a exibição de seu fortíssimo discurso numa sessão do Congresso Constituinte Brasileiro.
Que papel cabe aos militares no Brasil? Todas as incursões deles na política resultaram em perdas? Ou houve, em alguma esfera, avanço?
Historicamente há razões para a participação militar a partir de mudanças na sociedade brasileira no final do Século 19. O Brasil demorou demais para extinguir a escravidão e sair de vez da Monarquia. E nesse período final daquele século, os militares brasileiros deram um salto de participação com a Guerra do Paraguai. A série mostra que com a vitória contra a Bolívia, os militares brasileiros passaram a dar um novo valor à farda e a cultivar o desejo de mudanças políticas no país, mudança que se deu com a Proclamação da República justamente por um militar de alta patente, o Marechal Deodoro da Fonseca. Um movimento que ainda fortaleceu ainda mais os militares brasileiros. E, apesar de revezes, os militares nunca mais desistiram do sonho de poder na República Brasileira. Com futuras vitórias que custaram muito ao povo brasileiro e à nossa tênue democracia.
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