É absolutamente precoce o interesse do niteroiense Beto Feitosa pela obra de Rita Lee. Ele tinha apenas três anos de idade quando começou a ouvir as músicas da eterna rainha do rock brasileiro no disco de 1979, que ficou conhecido como Mania de você — título de uma das faixas. A partir dali, começou a acompanhar a trajetória da cantora e compositora paulistana.
O jornalista, que em 1996 lançou a revista Ziriguidum, fincou bandeira na internet e criou o RadioAtivo, projeto com um programa on-line e o primeiro site sobre música brasileira na rede, para o qual já entrevistou Paulinho Moska, Zélia Duncan, Leila Pinheiro e, claro, Rita Lee, entre outros.
Fã de carteirinha da "ídola", Feitosa, há pouco mais de um ano, idealizou o projeto que deu origem ao podcast Rita Lee — Discografia Comentada, com 33 episódios, que trazem histórias e comentários sobre todos os álbuns da cantora —, disponível no endereço hhttps:linktr.ee/ritalee. Para Feitosa, a discografia de Rita Lee, rica e diversa, faz um panorama do crescimento do pop rock brasileiro ao longo de quatro décadas.
No entendimento do criador do podcast, Rita é personagem fundamental da música popular brasileira desde a Tropicália e se manteve relevante durante os 44 anos, desde 1968, quando lançou o primeiro álbum, numa época em que ainda integrava Os Mutantes, até 2012, ano de lançamento de Reza, o disco mais recente.
Para desenvolver o projeto, Feitosa contou com a colaboração da cantora, compositora e produtora Crikka Amorim, que fez a gravação, a edição e a coprodução do material. Crikka lançou três discos e teve a primeira música tocada no rádio — uma demo apresentada por Rita Lee —, em seu programa Rádio Amador, que foi ao ar em 1986, na Rádio Cidade. Entre os trabalhos da produtora, está o álbum Pirataria — Rita Lee por Crikka Amorim, lançado em 2007.
O podcast traz depoimentos de produtores de discos de Rita Lee, como Guto Graça Mello, Max Pierre, Moogie Canazio, e de músicos que gravaram com ela, entre os quais Lee Marcucci, Lucia Turbull, Ricardo Feghali, Claúdio Infante, João Barone, André Christóvam e o brasiliense Milton Guedes. Há, ainda, histórias contadas por Caetano Veloso, Marina Lima, Paula Toller ,Angela Ro Ro e Fernanda Takay.
Entrevista //Beto Feitosa
Quando surgiu seu interesse pela música de Rita Lee?
É uma coisa que nunca vou conseguir explicar. Com três anos, tinha uma vitrolinha com os tradicionais discos de historinha, que não dava muita bola. Pedi para minha mãe o disco da Rita Lee. Ganhei e ele passou a girar 24 horas por dia lá em casa. É o disco de 1979 que tem, entre outras, Chega mais, Mania de você e Papai me empresta o carro. Uma criança de três anos cantando "Meu único defeito é não ter medo de fazer o que gosto" não poderia dar em nada além de um adulto com amor pela liberdade. Desde então, o presente de todo ano era um disco de Rita Lee. Na adolescência, comecei a entender melhor, ler livros, procurar informações. Isso estamos falando de tempos pré-internet. Fui criado e educado com essa ideia de liberdade e rebeldia da Rita. Muito do que sou devo a ela.
O que o levou a se debruçar sobre o legado da cantora e compositora paulistana?
Um amor sem explicação mesmo. Quanto mais eu conhecia, mais achava aquela mulher genial, ousada, transgressora. Eu adorava isso. Adorava aquela imagem de mulher contestadora, que enfrenta padrões e não vê muros na frente, questiona regras da sociedade. Quando eu crescer quero ser assim! Rita Lee é um tipo de pessoa que transforma o mundo. Esse fascínio me acompanha a vida inteira. Família, amigos, professores, todos sempre souberam. E foi engraçado quando as pessoas começaram a ler a biografia dela, como iam descobrindo, se tocando do tamanho dela e vinham conversar comigo.
Qual a sua avaliação sobre o conjunto da obra de Rita?
É uma obra sem igual, talvez no mundo. Isso fica claro pra mim nos 33 episódios do podcast. A Rita é uma artista que esteve em cena durante 50 anos sempre se mantendo relevante, atenta e criativa. A obra dela — especialmente a parceria com Roberto de Carvalho — nunca esteve perto de encontrar um limite, ficar repetitiva, se acomodar. O último disco dela começa com uma reza e termina com um solo instrumental de theremin. Imagina isso para uma artista pop do tamanho de Rita Lee? Só ela pode fazer isso. Com Os Mutantes, foi a Tropicália, e assim como Gil e Caetano, eles eram peças fundamentais no movimento. A liberdade, a criatividade, as brincadeiras deles. Impossível imaginar a Tropicália sem Os Mutantes. Com o Tutti Frutti, é a busca pela linguagem do rock brasileiro. O Fruto proibido, de 1975, é pedra fundamental para um rock realmente brasileiro, com letras geniais, ideias aproveitadas — mas não meramente copiadas — dos ingleses e americanos. Tem Stones, tem Bowie, tem Beatles, mas tudo com a cara dela. E depois, com a parceria com Roberto, Rita encontrou esse céu para voar. Sem limites, sem rótulos. Eles dois juntos têm uma química artística única. Os dois muito criativos: ela pelo lado das letras, dos temas, das melodias; ele trazendo uma sofisticação do pianista que conhece música erudita e bossa nova. Ali foi uma explosão. E volto a apostar — uma das melhores duplas do mundo, uma história incrível. Fico imaginando se Rita tivesse composto essa obra em inglês — e ela poderia ter feito isso.
Que fase da trajetória dela lhe chamou mais atenção?
Difícil falar isso porque são muitas histórias atravessadas, complementares. Mas eu aposto que a fase com Roberto, e isso ficou claro pra mim quando estava produzindo os programas. Com ele, ela traz toda a bagagem de Mutantes, de Tutti Frutti, das influências familiares, do que ouviu na infância. E tudo é permitido, tudo é aceito, tudo é testado. Eles criaram uma identidade muito forte, uma digital que você reconhece fácil. E estão aí dezenas de hits inesquecíveis — além de lados B que as pessoas ainda precisam conhecer. Os dois juntos uniram o rock e o carnaval. Você ouve Chega mais, Lança perfume, Banho de espuma, aquilo não existia antes deles e não voltou a acontecer depois. É deles, é legítimo e genial. Hoje em dia a gente vê as artistas do pop brasileiro tentando estudar, se adequar, chegar numa fórmula para lançar a carreira no exterior. Com eles foi ao contrário. A mistura de ritmos num caldeirão pop foi o que levou Lança perfume para fazer sucesso em diversos países. Tem um valor enorme isso.