A realidade e o devaneio se alternam em O último sonho, livro, em parte, baseado na vida real do eterno cineasta espanhol Pedro Almodóvar. "Em geral acho entediante escrever sobre mim, mas a leitura de escritores ou artistas que falam de si, que escrevem sobre si mesmos, me atrai", confessa o autor. E assim é possível vislumbrar os arroubos de Almodóvar, quando ele descreve implicâncias de terceiros, como uma mantida por Andy Wahrol, obcecado pela afirmação gay: "Entendo que isso deve tê-lo divertido por um tempo, que ele só quisesse compartilhar com o resto do mundo seu avatar mais banal, mas passar a vida assim?". Nos contos (são 12, no total) ele louva o domínio temporal na telona do colega Martin Scorsese; enaltece os escritos de Rubem Fonseca, e, como intelectual, celebra parcas adaptações fenomenais para sétima arte de James Joyce (Os vivos e os mortos) e Lampedusa (O leopardo).
E, as mulheres? Óbvio que ocupam pedestal. Joana, a bela demente surge para enfrentar um calvário até se estabelecer como rainha feminina e um "símbolo sublime e irracional" do que seja a alma espanhola. O conto emula situações de A bela adormecida (da Disney), mas avança, com Joana colocada numa trama repleta de festas "laicas, ruidosas, tradicionais e violentas", em vida norteada pela voz Deus.
Incomum também é o destino do velho jovem ("imaturo com o tempo") retratado em Vida e morte de Miguel, preso ao presente e à ação de conjuntura nebulosa, que desbota tanto a memória quanto o porvir. O desígnio da escrita castiga Miguel, "jovem demais para entender que o senso de perfeição (nos resultados da escrita) é inverso à passagem do tempo", como defende o autor Almodóvar. Delicado e dono de existência poética, Miguel se vê isolado, condição que, atualmente, aflige o cineasta escritor. Em Memórias de um dia vazio, ele assume que a solidão deriva "de não responder aos outros, por não ter cultivado verdadeiras relações de amizade ou por não ter dado atenção às que tinha".
Autocrítico, Almodóvar esperou por 40 anos para se arriscar à publicação. De certa forma, ele se vê um tanto na trajetória despretensiosa da pioneira roteirista Anita Loos, tornada autora do "melhor livro de filosofia já escrito por um cidadão americano", como ele descreve. Desprendido do narcisismo advindo com a própria obra, Almodóvar ressalta, no livro: "Ninguém é tolo a ponto de pensar que, ao escrever um bom roteiro, está destinado a escrever um bom romance, muito menos um grande romance".
Citando Federico García Lorca ("Há quem pense que os filhos são coisa de um dia. Mas demora muito. Muito"), Almodóvar deixa exposta a postura de filho amável, quando o tema é a mãe Francisca Caballero, morta há 25 anos. "(Com ela) Aprendi algo essencial para meu trabalho: a diferença entre ficção e realidade, e como a realidade precisa ser completada pela ficção para tornar a vida mais fácil", escreve ele, no conto O último sonho. No texto, ele descreve a vida à la Central do Brasil protagonizada pela mãe, que, aos vizinhos analfabetos, prestava o serviço de florear cartas com fatos e dados (inverídicos) que amenizavam dores e aplacavam expectativas nutridas pelos remetentes das cartas. Com as vistas "fora de foco", o diretor conta de como "tudo" aconteceu, quando da morte da mãe.
No exercício da plena imaginação, as narrativas de Almodóvar alcançam a sex symbol pornô Patty Diphusa e dois forasteiros entretidos com ambientes sacros e tentações. Um deles, tido como o Messias, "falava de imortalidade, de perfeição, de trevas, de amor e de salvação, mas com uma linguagem que era nova...". Um conde misterioso protagoniza, num enredo outra cena digna de cinema: "O Cristo de madeira começa a jorrar sangue por todas as feridas. Primeiro pelos pés, depois pelo peito e pelas mãos, pelo canto dos lábios, pelas têmporas. O conde se eleva no ar sem apoio algum e se lança a todas as fontes com a boca frenética".
Em trecho do capítulo Um romance ruim, o criador admite: "Pensamentos e canções me invadem continuamente e insistem em me acompanhar quando estou em silêncio, o que acontece na maior parte dos dias em que não estou filmando". Sendo assim, não fica difícil imaginar o espaço mental ocupado pela "deusa marginal" Chavela Vargas, definida nos acordes da música ranchera revestida de blues, ou recondicionada como fado ou "dolorosa canção de ninar", e que puxa mais uma narrativa de orfandade para o autor do conto Adeus, vulcão. Falando dos outros, Almodóvar diz muito de si.
O último sonho
De Pedro Almodóvar, editado pela Companhia das Letras, com tradução de Miguel Del Castillo. Preço, R$ 74,90 (192 pgs.) e R$ 39,90 (ebook).
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