
Na falta do dinamarquês Lars von Trier, inativo nas telas desde 2018, surgiu a brecha de um cinema polêmico e provocativo, represado durante algum tempo, até ser escalado para a maior vitrine de cinema: o Oscar. O longa Emilia Pérez chegou, chegando: nada menos do que 13 indicações, abaixo apenas das 14 para o musical La la land — Cantando estações, Titanic e A malvada. E empatado com um outra dúzia de sucessos, como o recente Oppenheimer, os musicais Mary Poppins e Chicago, além de, sim, E o vento levou... Uma enervante trama sobre uma personagem trans fazendo história. Na escalada para o sucesso, o filme tem as credenciais como melhor filme do ano e melhor filme internacional, a mesma situação de Ainda estou aqui.
Como num mea-culpa antecipado, a atriz central de Emilia Pérez, Karla Sofía Gascón (estopim para a convulsiva panela de pressão em torno do filme), ainda no palco do Festival de Cannes, afirmou, ao receber prêmio conjunto de interpretação: “Só quero enviar uma mensagem de esperança a todas: como ocorre com Emilia Pérez, todos temos a oportunidade de mudar para melhor, de sermos melhores pessoas”.
Revirado o baú virtual opinativo de Karla, em postagens das redes sociais, as mensagens provocaram críticas e repulsa: conteúdo racista, ataques ao crescente ao número de estrangeiros muçulmanos (no cotidiano da Espanha), visões questionáveis quanto a lésbicas, e até declarações jocosas em torno do Oscar (ao qual viria a ser indicada) despontam. Nem a equipe que cerca Fernanda Torres foi poupada do veneno. Com o avantajado histórico, Gascón caiu na vala comum dos julgamentos da internet. Descredenciada para a promoção do longa, ela bem que se desculpou, mas a retaliação teve maior eco.
Posta no quarto do castigo, Karla Sofía Gascón com antigas postagens apagadas, por mais que doa o uso chavão ordinário, terá que “ressignificar a jornada”. Quem deve estar em condição similar é o diretor do filme, Jacques Audiard, o sétimo cineasta de produção francesa, indicado ao Oscar, antecedido por gênios, como François Truffaut, Claude Lelouch, Costa-Gavras, Edouard Molinaro, Justine Triet e Julian Schnabel. Com o trato de cinema, Audiard transformou a região parisiense do Les Olympiades numa cenográfica capital mexicana. Nessa plataforma crítica (para muitos), o recordista do Oscar surfa, tranquilo, para o posto de hours concours em polêmicas. Aos olhos de alguns, entraram em campo “a gente terrível” (como descreveu Gascón num post) com implacáveis julgamentos.
Com background ferrenhamente libertário (vide O profeta; De tanto bater, meu coração parou e Dheepan, filmes que assinou), Audiard promoveu, sem premeditação, o caos. Curiosamente, foi ao adaptar trecho da narrativa de Écoute, livro de Boris Razon (que, ironicamente, conclama ao “Escutar” no título). Com louvável trabalho de atriz, Karla Sofía Gascón dá vida a Manitas (Faz-Tudo, em espanhol), irascível chefe do tráfico de drogas no México, que, por escolha, e num caminho árduo, chega à identidade com a qual se identifica, a de Emilia Pérez, uma trans. Acusado de compôr estereótipos, Audiard, que mirou numa realização aos tons de ópera, ouviu muito sobre a pontuada responsabilidade em retratar, sem muita profundidade, a realidade dos chamados desaparecidos (que ultrapassam 116 mil), pela ação criminosa de carteis do narcotráfico mexicano. A escalação dos latinos Edgar Ramírez e de Adriana Paz não parece ter atenuado a opção de colocar uma espanhola e duas coadjuvantes de peso, Zoe Saldaña e Selena Gomez (ambas norte-americanas) em papéis-chave. Zoe dá vida a uma amargurada, mas batalhadora advogada, que alça maiores voos profissionais; e Selena interpreta a volúvel esposa de Manitas.
Presença latina
Violência, opressão e desejos de transformação completa de vida estão entre enredos de filmes latino-americanos cogitados, ao longo do tempo, para o Oscar de melhor produção internacional, a exemplo de Emilia Pérez. Politizados, o mexicano Roberto Gavaldón, que conduziu Macario (1960), sobre a obsessão de um lenhador miserável por carne de ave assada, e o chileno Miguel Littín que, no México, rodou Acontecimentos de Marusia (1975) — sobre mineradores oprimidos que, em 1925, enfrentam patrões, o governo e o Exército. São exemplos do comprometimento da Academia com temas fortes. Ao lidar com títulos internacionais, o Oscar flertou com polêmica, como foi o caso de Ánimas Trujano (1962), de Ismael Rodríguez, que trouxe o chinês Toshirô Mifune na pele de um indígena que busca por respeito no vilarejo mexicano em que vive. Espanhol, atuante no México, o diretor Luis Alcoriza emplacou, na candidatura à estatueta, Tlayucan (1963), comédia sobre camponês envolvido num caso de quase linchamento, depois que uma pérola some, engolida por um porco de estimação.
Até a vitória do thriller chileno Una mujer fantástica (de Sebastián Lelio) colocar nos trilhos avanços na efetiva premiação de melhor filme internacional, tratando do drama de uma personagem trans (a princípio, desrespeitada), o Oscar tateou, com filmes estrangeiros, longas com questões sexuais. Há 52 anos, o espanhol Jaime de Armiñan (indicado em 1981, pelo pueril El nido), trouxe para a festa Mi querida señorita, que trata da mudança de sexo para uma conservadora, pela vida criada, como se fosse uma mulher. Também moderna, a narrativa do uruguaio Mario Benedetti, na adaptação de A trégua, levou o argentino Sergio Renán a ser indicado, por um filme que mostra dramas pessoais de um viúvo envolvido em questões de etarismo e homossexualidade. Situada em meados do século 19, a trama de amor, sexo, religião, castidade, numa rede de posicionamentos de direita, vista em Camila, levou a diretora María Luisa Bemberg à esfera do Oscar, em 1984.
Escalada hispânica
Numa história longa entre o Oscar e países latino-americanos e hispânicos, Emilia Pérez não traz a primeira polêmica: em 1993, Un lugar en el mundo foi apresentado como uruguaio, mas desclassificado diante da produção majoritária na Argentina. Chile, Argentina, Brasil, Espanha e México dominam uma cena que trouxe dois reconhecimentos para as potências de Cuba, Colômbia e Peru: respectivamente, com os filmes Morango e chocolate, em torno dos desdobramentos do amor entre um artista gay e um universitário imersos no regime castrista; O abraço da serpente (2015), feito em preto e branco, sobre aspectos da exploração da selva amazônica e ações curandeiras e, finalmente, La teta asustada (2009), feito pela sobrinha de Mario Vargas Llosa, Claudia Llosa detida em crendices e traumas sobre estupros cometidos por guerrilheiros do Sendero Luminoso.
Em 1993, Fernando Trueba venceu, pelo longa Sedução (exemplar espanhol, na cinematografia mais valorizada pelo Oscar), ambientado nos anos de 1930, nos quais um jovem é sufocado por um quarteto de pretendentes. José Luis Garcí, vencedor do Oscar por Começar de novo (1983), sobre o retorno de um escritor à cidade natal, passados 40 anos, foi um dos mais valorizados pela Academia. Com Sesión continua, em 1984, competiu, mostrando esforços (nos bastidores) de um roteirista e de um cineasta dispostos a se conectarem com gerações diferentes. Garci ainda concorreu, pelo filme Asignatura aprobada (1987), revelador das peripécias setentistas de um homem, na retomada de um amor inesperado e, O avô (1971), no qual um ancião busca, na Europa, por uma neta legítima.
Há 25 anos, Pedro Almodóvar venceu o Oscar por Tudo sobre minha mãe, uma década depois da indicação por Mulheres à beira de um ataque de nervos. Ele ainda obteve nova indicação, há cinco anos, pelo biográfico Dor e glória. Morto há dois anos, o espanhol Carlos Saura teve cinema tão dançante a ponto de competir, pela Argentina, com Tango (1998), isso 15 anos depois de colocar a Espanha na cara do Oscar, com Carmen (1983), título que trazia o lendário Antonio Gades junto à apaixonada trupe de flamenco. Numa corrente simbólica, com retrato dos desajustes franquistas, Saura competiu ao Oscar ainda por Mamãe faz 100 anos (1979).
À frente da imóvel jornada de Ramón Sampedro, que, por décadas, lutou pelo direito à eutanásia, Alejandro Amenábar venceu o Oscar, há 20 anos, por Mar aberto, estrelado por Javier Bardem. Tio do Javier, Juan Antonio Bardem, na 31ª edição do Oscar, compareceu com A vingança, que reuniu um delator, um ex-presidiário e a irmã deste num filme sobre paixão.
Sentimental e agitado, o cinema espanhol ainda esteve representado na jornada rumo à pretendida estatueta, há 27 anos, com Segredos do coração (de Montxo Armendáriz), no qual pessoas mortas mobilizam a mente de um menino criativo. Plácido (1961) foi outro emotivo, no qual Luis Garcia Berlanga mostrava, às vésperas do Natal, uma campanha de caridade desandando. Já o cinema de flamenco e de amores, colocou Francisco Rovira Beleta no mapa, com os filmes O amor bujo (1967), com Antonio Gades, e Paixão proibida (1963), que mobilizou a dançarina Carmen Amaya. Até o reconhecimento do representante pela Espanha (numa obra de J.A. Bayona), A sociedade da neve (2023), um produto da Netflix que associou tragédias chilenas e uruguaias, a partir da adaptação de um romance escrito por Pablo Vierci, o também multicultural Luis Buñuel cravou indicações espanholas com dois clássicos supremos: Esse obscuro objeto do desejo (1977) e Tristana (1970).