
Aos quatro anos, Marisa Monte mal pronunciava palavras. “Era praticamente muda”, lembra. Mas bastaram algumas notas em seu show de estreia, aos 20, para que o Brasil descobrisse uma das vozes mais potentes e sofisticadas de sua geração. Quase quatro décadas depois, a artista não apenas cantou — ecoou. Tornou-se uma voz ativa em defesa da cultura, da educação, do meio ambiente e das mulheres. “Todo aquele silêncio da infância virou música. E, quando finalmente comecei a falar, nunca mais me calei.”
Agora, prestes a estrear a maior turnê orquestrada de sua trajetória, Marisa Monte reafirma seu compromisso com a democratização da arte. Em outubro, ela sobe aos palcos com 55 músicos e uma nova orquestra sinfônica criada sob sua curadoria, com direção do maestro André Bachur. A primeira apresentação será no Parque Pampulha, em Belo Horizonte, dia 18. Depois, a caravana segue para o Rio, São Paulo, Curitiba, Brasília e Porto Alegre. “Será um espetáculo para todos, em arenas e parques. É arte ao ar livre, para quem talvez nunca tenha entrado numa sala de concerto, mas que merece ser tocado pela beleza da música.”
A artista — que já estampou a capa do jornal O Globo 35 vezes e é presença constante na história da música brasileira — fala com a mesma clareza sobre os desafios da indústria fonográfica. “Vivemos a transição do analógico para o digital, mas alguns direitos ficaram pelo caminho. O streaming precarizou os ganhos de quem vive da música. Precisamos lutar para resgatar isso. A música é patrimônio imaterial da humanidade.”
Marisa não separa arte de ação. Recentemente, foi condecorada com o título de Doutora Honoris Causa pela USP — apenas a terceira mulher a receber a honraria em 90 anos. A distinção veio acompanhada de um legado: ao lado de outras mulheres, articulou um fundo para garantir a permanência de alunos cotistas nas universidades públicas. O esforço virou política pública, sancionada pelo presidente Lula em julho. “É um marco para milhares de jovens. Uma vitória coletiva.”
Se o avanço das cotas foi comemorado, o mesmo dia trouxe revolta com a aprovação do chamado “PL da Devastação”, que flexibiliza regras ambientais. “Foi um tapa na cara. Enquanto avançamos de um lado, perdemos do outro. É urgente ocupar os espaços democráticos.”
A maturidade, para Marisa Monte, veio sem crises. “Nunca tive problema com idade. Cada ano vivido é um presente. Não brigo com o tempo — faço o melhor uso dele.” Mãe de Mano, 22, e Helena, 16, ela encontra na convivência familiar mais uma extensão do seu jeito de estar no mundo. “Na educação, o exemplo vale mais que qualquer discurso. E filho, como canção, a gente coloca no mundo sem saber que caminho vai seguir.”
Ícone de estilo alternativo, neste novo projeto Marisa aparece de jeans — um figurino inédito em sua estética habitual — e prova que a reinvenção segue viva. “Foi ideia do Giovanni Bianco. Entrei na brincadeira. Gosto de experimentar, mas sempre buscando manter minha essência.”
Perguntada sobre o futuro da música, não hesita: “A música brasileira sempre foi um organismo vivo. Vai continuar pulsando, mesmo diante dos desafios. É nossa alma coletiva.” E às novas gerações, deixa um conselho que carrega o peso da experiência: “Antes de ser cigarra, fui muita formiga. Estudem, escutem, sejam fiéis à sua verdade. A arte começa transformando quem a faz.”
O disco que reinventou a carreira de Marisa Monte
Em 2025, um dos álbuns mais emblemáticos da música brasileira contemporânea completa 25 anos: Memórias, Crônicas e Declarações de Amor, de Marisa Monte. Lançado em maio de 2000, o disco não apenas consolidou a artista como uma das vozes mais relevantes da MPB, mas também marcou uma virada estética e emocional em sua trajetória.
Naquele momento, Marisa já era um nome estabelecido. Vinha do sucesso de Barulhinho Bom (1996), que combinava registros ao vivo e de estúdio, e transitava com segurança entre a reverência aos mestres da música popular e experimentações tímidas. Com Memórias, no entanto, a artista deu um passo além: trocou os arranjos grandiosos por construções mais sutis e íntimas, apostando numa sensibilidade que mais murmurava do que gritava.
O álbum trouxe ao centro composições que, apesar de simples na forma, revelavam um universo emocional complexo. Canções como “Amor I Love You”, “Não Vá Embora” e “Tema de Amor” deixaram de lado o virtuosismo para mergulhar na vulnerabilidade, na ternura e na melancolia do cotidiano. A produção minimalista, aliada a elementos de pop, eletrônica discreta e samba, criou uma atmosfera que ainda soa atual — um feito raro após duas décadas e meia.
O disco também foi terreno fértil para o florescimento da parceria com Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, que anos depois daria origem aos Tribalistas. Embora os três já tivessem cruzado caminhos anteriormente, foi em Memórias que a química artística do trio ganhou contornos mais nítidos. A colaboração brilhou especialmente no hit “Amor I Love You”, que ousava ao incluir um trecho narrado de O Primo Basílio, de Eça de Queirós, criando um diálogo improvável entre literatura e pop.
Outras faixas assinadas pelo trio, como “Não É Fácil”, “Água Também é Mar” e “Para Ver as Meninas”, reforçaram a força dessa união criativa, antecipando a estética que os Tribalistas apresentariam formalmente ao público dois anos depois.
Mais do que um retrato da artista naquele momento, Memórias, Crônicas e Declarações de Amor se tornou um espelho da sensibilidade musical brasileira no início do século XXI. Sua influência reverbera ainda hoje em nomes como Céu, Rubel, Liniker, Anavitória e Tiago Iorc — artistas que também caminham entre o popular e o íntimo, entre o delicado e o acessível.
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