Em novo projeto,Bosco Martins revisita amizade com o poeta Manuel de Barros

Em entrevista ao Correio, o jornalista e escritor Bosco Martins fala sobre a relevância da poesia "letral" de Manoel de Barros numa era " telal"

Manoel de Barros e Bosco Martins  -  (crédito: Divulgação )
Manoel de Barros e Bosco Martins - (crédito: Divulgação )

Se vivo estivesse, Manoel de Barros completaria 109 anos neste 19 de dezembro diante de um mundo que talvez o convocasse ao silêncio — aquele silêncio fértil de quem observa um inseto ou escuta a respiração da pedra. Em um Brasil onde, pela primeira vez, o número de não leitores supera o de leitores, e onde o "ser letral" cede espaço ao "ser telal", a poesia do ínfimo não se torna ruína: transforma-se em refúgio, provocação e resistência. Como habitar um quintal imaginário em tempos de hiperconexão? Como ouvir a delicadeza do mundo em meio ao ruído digital?

Fique por dentro das notícias que importam para você!

SIGA O CORREIO BRAZILIENSE NOGoogle Discover IconGoogle Discover SIGA O CB NOGoogle Discover IconGoogle Discover

Em entrevista ao Correio Braziliense, o jornalista e escritor Bosco Martins, autor de Diálogos do Ócio — Um inventário de amizade com Manoel de Barros, revisita a convivência rara com o poeta pantaneiro e reflete sobre a atualidade de sua obra. A conversa entrelaça memória afetiva, bastidores literários e os desafios da formação de leitores na era das telas.

O momento é simbólico. Em 2026, Diálogos do ócio será relançado pela Editora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em edição ampliada, com textos inéditos, fotos de arquivo e raridades literárias — entre elas, um poema até então desconhecido de Manoel de Barros, dedicado ao amigo Douglas Diegues, criador do "portunhol selvagem". Uma joia para leitores, pesquisadores e colecionadores.

Soma-se a esse movimento editorial a aguardada biografia de Manoel de Barros, que será lançada pela Companhia das Letras, assinada pelo professor e escritor Gustavo Castro, da Universidade de Brasília, ampliando o campo de leitura crítica sobre um dos maiores poetas brasileiros.

Ao longo desta entrevista, Bosco Martins analisa a força candente da poesia barrosiana, discute cultura como gesto de resistência e, em generosidade rara, oferece  aos leitores um poema de Natal de Manoel de Barros — publicado pela primeira vez no Correio Brasiliense. Um poema fora dos livros e  que segundo Bosco, atravessou as redes, fazendo do poeta, também "viral".

Entrevista//Bosco Martins

Estamos comemorando a data que celebraria seus 109 anos, 19 de dezembro. Qual a melhor forma de homenageá-lo?

Lendo-o. Lendo em voz alta. Deixando que seus versos "transvejam" nossa realidade demasiado acostumada. E, claro, celebrando em comunidade, com arte e música, como propõe o evento na Casa-Quintal que leva seu nome. É uma oportunidade de praticarmos coletivamente o "dessaber" e a "desutilidade poética" que ele tanto prezava. Honrar Manoel de Barros é se permitir parar, olhar para as pedras, os insetos, as águas paradas, e ouvir a poesia que emana delas. É, nas palavras dele, reconhecer que "Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas — é de poesia que estão falando".

Como tem sido junto ao público infantil a peregrinação com Diálogos do ócio para homenagear o poeta?

Como a infância que sempre habitou o poeta Manoel de Barros, reencontro-me nas crianças. É a elas que me dirijo quando entro nas escolas, até o sexto ano, levando a literatura de Manoel pelas páginas de Diálogos do ócio. Recentemente, me emocionei muito com os alunos da escola Oswaldo Tognini (Funlec), onde palestrei num projeto deles. Ali, a palavra volta a brincar, a tropeçar, a descobrir o mundo como quem o vê pela primeira vez. À maneira de Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa, que peleava contra a má literatura, a poesia de Manoel de Barros enfrenta os tempos contemporâneos. Ela se levanta como resistência delicada, como esperança do ser letral — esse que insiste em existir — num mundo cada vez mais digital, veloz e distraído. É poesia que desacelera, que devolve sentido às miudezas e lembra que a linguagem, quando viva, ainda pode salvar o humano.

O biógrafo e professor da UnB que escreve a biografia do poeta, você conhece?

Sim, falamos bastante sobre o poeta. Ele também esteve na Feira Literária de Bonito (MS) falando de seu livro. A expectativa é grande, vai ser uma excelente fonte pelo que apurou sobre o poeta. Ele analisa a vida, a obra e o paradoxal silêncio local sobre Manoel de Barros, segundo ele mesmo anunciou em entrevista local. O Gustavo Castro é um professor dedicado e grande ensaísta e dedicou mais de cinco anos a estudar a vida e a obra de Manoel de Barros e o que mais o surpreendeu durante essa imersão foi o profundo desprendimento material do poeta que era, na verdade, um milionário. Manoel era dono de fazendas, avião, bois, mas tinha uma postura de desapego e uma certa "desimportância existencial". Isso chocou e encantou o biógrafo. Ele vestia roupas de defuntos, dificilmente comprava algo novo. Esse traço de simplicidade radical foi o que mais o sensibilizou ao que parece. Mas vamos aguardar o livro. Não gostaria de dar spoiler sobre obra alheia de que ouvi falar.

Seu texto começa com uma imagem poderosa: abrir um livro de Manoel de Barros é como atrair passarinhos para a janela. Como foi o seu primeiro encontro com a obra dele?

Foi um encontro por procuração, um presente tardio e despretensioso. Meu pai, um escritor regionalista, tinha um livro prefaciado por ele: Na Venda do Tatu e me enviou, há muitos anos, dois livros, anunciando-os como "presentes absolutamente inúteis, imprestáveis, inservíveis". Era puro Manoel de Barros, é claro. Ele sabia que a única utilidade daquilo era a possibilidade de "suavizar um bocadinho a sua rotina e atrair alguns passarinhos para perto da sua janela". Vi aquele homem de fala mansa, olhos cheios de azul, e entendi que estava diante de uma raridade: um poeta que se declarava "vagabundo profissional" e equiparava escrever poesia a "carregar água na peneira". Aquele foi o início de uma longa convivência.

E o que sustentou essa longa convivência? O que há na essência da poesia de Barros que tanto nos cativa?

A essência é uma subversão radical, porém delicada. Manél, às vezes eu o chamava, praticava o que chamava de "vanguarda primitiva". Sua matéria-prima não era o épico, mas o ínfimo. Ele não queria descobrir ouro; queria descobrir insignificâncias. Sua obra é um compêndio sobre o nada, uma "gramática expositiva do chão". Ele via a si mesmo como um "apanhador de desperdícios", alguém que encontrava beleza e verdade no que a civilização rejeita. Isso vai muito além de um simples regionalismo pantaneiro. É uma postura filosófica. Como ele mesmo disse, "Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós".

Essa infância parece ser o eixo central. Ele dizia que 90% do que escrevia era invenção e só 10%, mentira.

(Risos) Sim, e é uma distinção preciosa. A invenção é o território da liberdade pura; a mentira, um gracejo dentro dele. Manoel foi um "caçador de achadouros da infância" até o fim. Mesmo após os 90 anos, subia todos os dias ao seu "escritório de ser inútil" para anotar visões em cadernos que ele mesmo grampeava. Ele manteve uma fidelidade absoluta à criança que foi, criada entre as águas e os bichos do Pantanal. Essa criança nunca aceitou a autoridade das definições. Ela preferia negociar sabiás com o Seu Margens ou ouvir as bobagens profundas de um "bocó". Sua obra é a perpetuação desse estado de encantamento. Não à toa, Carlos Drummond de Andrade recusou o título de maior poeta vivo do Brasil em seu favor.

E como um homem que valorizava tanto o silêncio e a reclusão lidou com o reconhecimento, que veio tardiamente?

Com uma ironia gentil e uma integridade inquebrantável. Conta-se que, em uma cerimônia de premiação na Biblioteca Nacional, ele subiu ao palco e disse apenas: "Tudo o que tenho a dizer é que não tenho nada a dizer". Era seu "desdiscurso". Ele confessou que nunca enviou livros a críticos nem fez média com jornalistas. Mas, no íntimo, orgulhava-se de ser um dos poetas mais lidos do país. Havia uma contradição lúcida e aceita ali. Ele sabia que sua "abundância de ser feliz" vinha justamente do seu "atraso de nascença", de ser alguém "aparelhado para gostar de passarinhos". Seu quintal era, de fato, maior que o mundo.

Qual o legado de Manoel de Barros?

Um método de ver. Ele nos deixou não apenas poemas, mas um jeito de habitar a linguagem e o mundo: com estranhamento, com reverência ao que não serve, com a coragem de "errar bem o idioma". Seu legado é a liberdade de criar um idioma pessoal ("manoelês") para dizer o indizível. Prova disso é que, após sua morte em 2014 (aos 97 anos), duas escolas de samba do Rio o transformaram em enredo e venceram o carnaval. Sua poesia, enfim, virou batucada — a mais alta forma de reconhecimento popular para um menino que um dia rabiscou uma estátua e, no fazer, começou a redesenhar o mundo.

Há uma história emblemática sobre as memórias que ele escreveu. Pode contá-la?

Aos 80 e poucos anos, um editor pediu que ele escrevesse três memórias: da infância, da vida adulta e da velhice. Manoel, com seu tempo próprio, enviou primeiro "Memórias da primeira infância". Tempos depois, "Memórias da segunda infância". E depois, "Memórias da terceira infância". O editor, perplexo, perguntou: "E as memórias da vida adulta e da velhice?". Manoel respondeu: "Só tive infância. Nunca tive velhez. Só narro meus nascimentos". Para ele, essa infância não é uma idade, mas um estado de linguagem, de novidade, um "devir-criança" permanente.

E ele faz uma distinção entre "velhice" e "velhez", constante em sua obra, não é?

"Velhez" é o antipossível, o que sufoca. É diferente da velhice cronológica. Artistas como os irmãos Espíndolas, Caetano, Chico Buarque, Bethânia, o próprio Manoel, são exemplos de velhice sem velhez. A velhez é também a estupidez das guerras, que têm as crianças como primeiras vítimas. A arte, a criatividade e a educação são antídotos, potências que "não nos deixam faltar o ar" mesmo em atmosferas sufocantes.

Umberto Eco afirmou que "a internet deu voz a uma legião de imbecis". Essa declaração ainda faz sentido?

Bosco Martins: Talvez ainda mais hoje. Eco enxergou antes de muitos que a internet nos roubaria a capacidade de análise crítica. O excesso de informação, sem hierarquia e sem filtros, cria uma falsa sensação de conhecimento, mas fragiliza a interpretação profunda.

Qual é o papel da literatura nesse contexto cultural?

Além de dar conteúdo, a literatura não é apenas lazer. Ela humaniza, amplia percepções, provoca reflexão e produz consciência social. Antonio Cândido dizia que a literatura não corrompe nem edifica — ela humaniza. E esse caráter formador permanece indispensável às gerações futuras.

O poeta Manoel de Barros tem um Poema de Natal e embora não esteja em livros viralizou na internet. O que fez o poeta letral também ser viral?

Manoel de Barros era mestre em dar importância ao que parece pequeno ou insignificante. O "olhar de pássaro" é a grande sacada do poema. Não é um presente comum, é uma nova forma de ver o mundo. Enquanto nós, adultos "sérios", olhamos para o Natal e vemos shopping lotado e lista de compras, o avô do poema, com esse olhar, vê possibilidade de arte, de mudança. Ele vê um mundo cansado e decide renová-lo de um jeito completamente fora da caixa. É um convite para a gente observar o Natal — e a vida — com mais poesia e menos pressa.

Para terminar, o que fica após uma vida dedicada a "apanhar desperdícios"?

Fica a prova de que a verdadeira grandeza reside nas pequenezas. Fica um corpo de obra que é um antídoto contra a arrogância do conhecimento útil. Ele nos deixou a liberdade de "transver", de encontrar nosso próprio quintal interior, que pode ser maior que o mundo. Sua morte, em 2014, não apagou essa voz. Como escrevi no início, abrir um livro de Manoel é convocar passarinhos. E eles continuam vindo, pousando em nossas janelas, nos lembrando que, às vezes, "estar ali caminhando. Gostar de estar assim esquecido" é o maior dos feitos. É preciso apenas ter coragem de amar as insignificâncias.

 

  • Google Discover Icon
postado em 20/12/2025 00:01 / atualizado em 20/12/2025 08:10
x