Crônica

De ideia-sonho à realidade: malungos no Distrito Federal

Depois de atravessar madrugadas, conversas e memórias, o sonho pediu passagem, ocupou o território do necessário e do urgente, até encontrar caminho para nascer.

Lucas Mendes -  (crédito: Arquivo pessoal)
Lucas Mendes - (crédito: Arquivo pessoal)

Há portas que só se abrem pelo lado de dentro. Desde que ouvi essa frase pela primeira vez, de uma respeitada iyalorixá do Rio Grande do Sul, uma ideia-sonho começou a germinar dentro de mim. Primeiro, permaneceu um bom tempo no território do sonho, como uma ideia em suspenso. Não tinha forma, mas a missão estava bem definida: oferecer acolhimento por meio da arte, da cultura, da saúde mental e da educação, e promover o enfrentamento de desigualdades estruturais e históricas do nosso país, especialmente o racismo.

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Depois de atravessar madrugadas, conversas e memórias, o sonho pediu passagem, ocupou o território do necessário e do urgente, até encontrar caminho para nascer. E, enfim, nasceu o IKMA - Instituto Kilombo Malunguinho. O que um dia foi apenas sonho, ganha nome, espaço, matéria e começa a se transformar em realidade. Não para ser um fim, mas para seguir sendo caminho, resposta e reencontro. Um reencontro de Malungos. Um reencontro com Malunguinho.

Malungos são todos aqueles que, após a diáspora africana de pessoas negras, e mesmo oriundos de diferentes lugares e etnias, se encontram na nova terra. Esses, unidos pelo enfrentamento à escravização e ao racismo, tornam-se então irmãos pela diáspora. Malunguinho, além de entidade afroindígena que habita as matas e detém a chave dos 7 Reinos, abrindo as portas fechadas e libertando aqueles que estão presos espiritualmente, foi também um líder da resistência no Quilombo de Catucá, no Pernambuco do século 19.

Fruto de uma ideia-sonho, o IKMA abraça a referência dos Malungos e de Malunguinho e nasce com o intuito de criar uma espécie de Quilombo Urbano no Distrito Federal, que promova enfrentamento das desigualdades sociais, especialmente o racismo. A proposta é ser um espaço de acolhimento através da arte, cultura, saúde mental e educação, voltado especialmente para pessoas negras e pessoas minorizadas onde seja possível existir e exercitar a promoção da autonomia psicossocial. Carrega o nome de quilombo por se propor a ser este lugar de resistência, existência e re-encontro dos irmãos e irmãs Malungos.

O instituto não se propõe a ocupar o tempo extra da vida e sim uma parte do tempo cotidiano, no qual pessoas dissidentes possam se sentir seguras, investindo e sendo investidas em projetos de promoção de autonomia psicossocial. Todo trabalho será reconhecido e remunerado devidamente, com foco em privilegiar o trabalho de pessoas negras e/ou dissidentes.

O IKMA já realizou na sua criação o Projeto de Oficina de Teatro Terapêutico em parceria com instituições parceiras, no qual ocorrem encontros coletivos conduzidos por mim e pela professora de teatro Lucélia Freire. Nesses encontros são realizadas atividades baseadas em jogos teatrais com foco em trabalhar aspectos de saúde mental específicos daquele coletivo.

E pretende realizar muito mais. Porque o IKMA é esse sonho que nasce da percepção de que certos caminhos não podem mais ser adiados. Ele busca responder a demandas visíveis e recorrentes, que evidenciam a necessidade de um lugar de acolhimento, de não julgamento e de enfrentamento às desigualdades históricas. A ideia cresceu sustentada por essa urgência coletiva, e hoje é presença: temos um espaço, e inauguramos nosso percurso, abrindo portas para novas possibilidades e reafirmando um compromisso que começou muito antes de existir no papel.

Lucas Mendes é médico psiquiatra, psicanalista transcultural, ator e presidente fundador do IKMA (Instituto Kilombo Malunguinho)

 

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postado em 28/11/2025 06:00
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