
Há portas que só se abrem pelo lado de dentro. Desde que ouvi essa frase pela primeira vez, de uma respeitada iyalorixá do Rio Grande do Sul, uma ideia-sonho começou a germinar dentro de mim. Primeiro, permaneceu um bom tempo no território do sonho, como uma ideia em suspenso. Não tinha forma, mas a missão estava bem definida: oferecer acolhimento por meio da arte, da cultura, da saúde mental e da educação, e promover o enfrentamento de desigualdades estruturais e históricas do nosso país, especialmente o racismo.
Depois de atravessar madrugadas, conversas e memórias, o sonho pediu passagem, ocupou o território do necessário e do urgente, até encontrar caminho para nascer. E, enfim, nasceu o IKMA - Instituto Kilombo Malunguinho. O que um dia foi apenas sonho, ganha nome, espaço, matéria e começa a se transformar em realidade. Não para ser um fim, mas para seguir sendo caminho, resposta e reencontro. Um reencontro de Malungos. Um reencontro com Malunguinho.
Malungos são todos aqueles que, após a diáspora africana de pessoas negras, e mesmo oriundos de diferentes lugares e etnias, se encontram na nova terra. Esses, unidos pelo enfrentamento à escravização e ao racismo, tornam-se então irmãos pela diáspora. Malunguinho, além de entidade afroindígena que habita as matas e detém a chave dos 7 Reinos, abrindo as portas fechadas e libertando aqueles que estão presos espiritualmente, foi também um líder da resistência no Quilombo de Catucá, no Pernambuco do século 19.
Fruto de uma ideia-sonho, o IKMA abraça a referência dos Malungos e de Malunguinho e nasce com o intuito de criar uma espécie de Quilombo Urbano no Distrito Federal, que promova enfrentamento das desigualdades sociais, especialmente o racismo. A proposta é ser um espaço de acolhimento através da arte, cultura, saúde mental e educação, voltado especialmente para pessoas negras e pessoas minorizadas onde seja possível existir e exercitar a promoção da autonomia psicossocial. Carrega o nome de quilombo por se propor a ser este lugar de resistência, existência e re-encontro dos irmãos e irmãs Malungos.
O instituto não se propõe a ocupar o tempo extra da vida e sim uma parte do tempo cotidiano, no qual pessoas dissidentes possam se sentir seguras, investindo e sendo investidas em projetos de promoção de autonomia psicossocial. Todo trabalho será reconhecido e remunerado devidamente, com foco em privilegiar o trabalho de pessoas negras e/ou dissidentes.
O IKMA já realizou na sua criação o Projeto de Oficina de Teatro Terapêutico em parceria com instituições parceiras, no qual ocorrem encontros coletivos conduzidos por mim e pela professora de teatro Lucélia Freire. Nesses encontros são realizadas atividades baseadas em jogos teatrais com foco em trabalhar aspectos de saúde mental específicos daquele coletivo.
E pretende realizar muito mais. Porque o IKMA é esse sonho que nasce da percepção de que certos caminhos não podem mais ser adiados. Ele busca responder a demandas visíveis e recorrentes, que evidenciam a necessidade de um lugar de acolhimento, de não julgamento e de enfrentamento às desigualdades históricas. A ideia cresceu sustentada por essa urgência coletiva, e hoje é presença: temos um espaço, e inauguramos nosso percurso, abrindo portas para novas possibilidades e reafirmando um compromisso que começou muito antes de existir no papel.
Lucas Mendes é médico psiquiatra, psicanalista transcultural, ator e presidente fundador do IKMA (Instituto Kilombo Malunguinho)
