Contas públicas

Governo e Congresso negociam parcelamento de precatórios para o novo Bolsa Família

Meta é garantir recursos para o futuro programa social. Especialistas criticam a prática, considerada um "calote"

Rosana Hessel
Vera Batista
postado em 03/08/2021 06:00
 (crédito: Pedro Gontijo, da Agência Senado)
(crédito: Pedro Gontijo, da Agência Senado)

Em uma reunião fora da agenda para tratar do novo Bolsa Família, os ministros da Casa Civil, Ciro Nogueira; da Economia, Paulo Guedes; da Secretaria de Governo, Flávia Arruda; e da Cidadania, João Roma, discutiram hoje (02/08) com os presidentes da Câmara e do Senado Federal, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC), para o parcelamento de precatórios — dívidas judiciais da União — e, de quebra, financiar o novo programa social do governo.

De acordo com nota divulgada pela Casa Civil, a PEC que altera mudanças nas regras de parcelamento dos precatórios, ampliando a possibilidade de parcelamento já prevista na Constituição Federal, “será apresentada nos próximos dias”.

O documento informou que a “ideia é fazer uma separação dos 'superprecatórios' das dívidas de menor valor, e permitir, assim, que o governo parcele dívidas judiciais acima de R$ 66 milhões. A medida visa reequilibrar as contas em virtude do montante de precatórios previstos, via decisão judicial, para o exercício de 2022". Segundo uma fonte do governo, no momento, esse é “o maior problema a ser equacionado, porque é muito complexo”.

Criação de fundo
Está incluída na PEC a previsão de um fundo, constituído a partir de recursos provenientes de alienações de ativos, venda de estatais, dividendos, entre outras fontes de receita. Com ele, poderá ser feito o pagamento antecipado dos precatórios parcelados, além de eventuais parcelas extras de programas sociais, como o novo Bolsa Família, que deverá ser criado por meio de Medida Provisória.

Fontes que participaram do encontro reforçaram que o discurso do ministro Paulo Guedes, ao defender a proposta, foi de respeitar o limite do teto de gastos — emenda constitucional que limita o aumento de despesas à inflação do ano anterior. Contudo, não há uma informação clara se as despesas que serão custeadas pelo fundo ficarão dentro do limite do teto, pois, se ficarem fora, será uma tentativa de contabilidade criativa do chefe da equipe econômica.

“Importante ressaltar que a mudança não permitirá nenhuma exceção de despesas permanentes e recorrentes ao teto de gastos”, informou a nota da Casa Civil. Em relação ao novo programa social, a pasta apenas citou que "a meta é dar aos brasileiros oportunidade de sair de situações de vulnerabilidade e inseri-los no sistema produtivo do Brasil".

O novo Bolsa Família ainda não está totalmente delineado no Ministério da Economia, pois um valor acima de R$ 300 deverá consumir integralmente a folga estimada pela pasta, de R$ 25 bilhões a R$ 30 bilhões, no teto de gastos de 2020. Além disso, o reforço do novo Bolsa Família implica a aprovação da proposta que adia o pagamento de precatórios. O assunto é delicado e pode provocar mais judicialização e insegurança jurídica se o parcelamento não for muito bem estruturado.

O encontro dos ministros com Pacheco e Lira durou uma hora. De acordo com fontes próximas aos ministros, não foram tratados valores e, muito menos, o novo nome do programa. No ano passado, o governo chegou a discutir o Renda Brasil. Mas a proposta elaborada pela equipe de Paulo Guedes foi descartada pelo presidente Jair Bolsonaro, porque previa a extinção do abono salarial.

“Jabuticaba”
O plano de prorrogar os precatórios para abrir espaço ao Bolsa Família enfrenta resistências. Apesar de o ministro Paulo Guedes afirmar o contrário, analistas dizem que se trata de “calote” e que o governo se beneficia de uma “jabuticaba”, existente apenas no Brasil.

O economista Gil Castello Branco, especialista em contas públicas e secretário-geral da Associação Contas Abertas, calcula que a fatura para 2022 é de R$ 33,5 bilhões a mais que em 2021. O valor total das dívidas decorrentes de decisões judiciais (de pessoas físicas e jurídicas), no total, é de R$ 89 bilhões. Mas há previsão de desembolso para essa rubrica de R$ 55,5 bilhões, em 2021. Castello Branco destaca que essa obrigação de pagar do Executivo federal cresce ano a ano. Em 2010, estavam orçados R$ 15,3 bilhões para este fim. Em 2015, foram R$ 26,2 bilhões. Em 2020, saltou para R$ 53,4 bilhões. E, em 2021, R$ 55,5 bilhões.

“São consequências de intervenções da União em diversos setores, sem fundamentação legal, o que gera contestações na Justiça e, via de regra, condenações em valores vultosos. O crescimento expressivo dos precatórios é preocupante, pois são despesas obrigatórias que comprimem, cada vez mais, as discricionárias, que já estão no menor patamar da história”, explica Castello Branco. O que não justifica o discurso de Guedes, embora o ministro tenha garantido que os pequenos precatórios não serão afetados, que pretende quitar imediatamente os de valores até R$ 60 mil e que o montante (os R$ 33,5 bilhões) é fundamental para manter com valores maiores o novo Programa Bolsa Família.

No entanto, com a inflação persistente, o espaço fiscal que o governo contava, de mais de R$ 40 bilhões, no ano que vem, está minguando. “Agora, já se fala em R$ 20 bilhões. Ou seja, sequer vai dar para bancar o aumento no valor mensal do Bolsa Família, de R$ 193 para R$ 300, porque, sem considerar a expansão da base, apenas com o reajuste, o programa, que custava anualmente R$ 34 bilhões, vai passar para R$ 53 bilhões. O governo está em uma sinuca de bico. Vai ser difícil conseguir espaço”, afirma Castello Branco

(Colaborou Fernanda Fernandes).

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Especialistas criticam procedimento

O plano do governo de parcelar o pagamento de precatórios é alvo de duras críticas entre advogados especialistas. “O Brasil é o único lugar do mundo que tem isso (precatório). Em qualquer outro país, quando o governo deve, paga imediatamente. Aqui, se criou uma ordem de pagamento com carência. A coisa é tão absurda, que temos leilão de precatórios e com mais de 40% de desconto”, aponta Jacques Veloso, do escritório Veloso de Melo Advogados. Problema maior é que os possíveis credores não terão a quem recorrer caso recebam o calote. “O Supremo Tribunal Federal (STF) já relativizou a regra e condicionou o pagamento à disponibilidade orçamentária. Se não tem dinheiro em caixa, não adianta recorrer ao Judiciário”, reforçou Veloso.

O prejuízo não será apenas para pessoas físicas e jurídicas, mas afeta o mercado financeiro e abala a imagem do país no exterior. “Existem fundos lastreados em precatórios e os investidores estão atentos, porque se o país não paga os credores internos, que muitas vezes ganharam ações na Justiça após décadas, não se sabe o que acontecerá com os externos. O Artigo 100 da Constituição é claro: o governo tem obrigação de pagar”, afirma Veloso. O advogado Washington Barbosa, diretor acadêmico do Instituto Dia, entende que essas ações chamadas alimentares, normalmente trabalhistas, são importantes.

“Mas o interesse individual não pode superar o interesse coletivo”, assinala Barbosa. Ele lembra que, antes da Constituição de 1988, aqueles que ganhavam os processos de precatórios tinham o direito de bloquear o dinheiro do ente federativo (União, Estados ou municípios). “Acontecia que, pela falta de recursos disponíveis, os servidores ficam sem salários. Ou seja, o que a Constituição tentou equilibrar foi a reserva do possível. Não se pode pagar sem ter e não se pode ficar sem dinheiro para o SUS, por exemplo”, reitera Barbosa. (VB)

Parecer mantém isenção de IR para quem ganha até R$ 2,5 mil

Um novo parecer nas mãos do deputado Celso Sabino (PSDB-PA) mantém a isenção de Imposto de Renda para trabalhadores celetistas que ganham até R$ 2,5 mil. O relator não alterou as alíquotas de dedução de IR e faixas de renda fixadas no texto original do projeto. O substitutivo, apresentado ontem, além de propor alterações no IR para pessoas físicas e jurídicas, implementa a tributação sobre lucro líquido (dividendos) das empresas.

Segundo a proposta, quase todas as faixas de renda na base de cálculo terão as deduções do IR reduzidas. Quem recebe de R$ 2.826,66 a R$ 3.200,00, por exemplo, terá redução no desconto de 15% para 7,5%. A estimativa do governo é de que as alterações beneficiarão mais 5,6 milhões de contribuintes. Assim, os isentos, que hoje somam 10,7 milhões de trabalhadores, passariam a corresponder a 50% do total de 31 milhões de declarantes.

Em relação à tributação sobre rendimento líquido das empresas, o substitutivo de Sabino manteve a isenção de tributação de 20% para empresas do Simples Nacional que arrecadam até R$ 4,8 milhões. Também permanece a isenção de impostos prevista no Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), para empresas que oferecem vale-refeição aos empregados.

Para Silas Santiago, gerente de políticas públicas do Sebrae, a isenção na distribuição de lucros da pequena empresa optante pelo Simples Nacional para seus titulares ou sócios é positiva. Mas alguns pontos ainda preocupam. “A questão da isenção traz consigo a obrigatoriedade da contabilidade completa, o que hoje não é necessário. Além disso, também defendemos que o adicional do imposto de renda, que é os 10 % cobrado a partir de determinado lucro, deve ter correção, pois afeta as pequenas empresas optantes pelo lucro presumido”, afirma Santiago. O tributo citado pelo gerente do Sebrae foi instituído em 1996 e, desde então, não teve correção.

Ana Carolina Monguilod, sócia do i2a Advogados e professora do Insper, é contra a tributação de dividendos da maneira prevista pelo relator Celso Sabino. Segundo a professora, os esforços para melhorar a proposta têm sido insuficientes. Ela considera não haver um equilíbrio entre a tributação dos dividendos e a redução correspondente no Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Além disso, continua a especialista, a imprevisibilidade dos impostos pagos por empresários pode causar insegurança jurídica. “É uma loucura o empresário não saber qual imposto vai pagar porque isso depende de evento futuro. É fazer com que nosso sistema tributário, que não nos dá qualquer segurança jurídica, fique ainda mais incerto”, critica.

Mudanças na tabela de pessoa física
Veja a proposta que consta no PL 2337/21, que trata da reforma do Imposto de Renda.

Como é hoje
Renda (R$) Alíquota (%) Parcela a deduzir do IR (R$)
Até R$ 1.903,98 Isento —
De R$ 1.903,99 a R$ 2.826,65 7,5% 142,80
De R$ 2.826,66 a R$ 3.751,05 15% 354,80
De R$ 3.751,06 a R$ 4.664,68 22,5% 636,13
Acima de R$ 4.664,68 27,5% 869,36

Como ficaria
Até 2.500,00 Isento —
De 2.500,01 até 3.200,00 7,5% 187,50
De 3.200,01 até 4.250,00 15% 427,50
De 4.250,01 até 5.300,00 22,5% 746,25
Acima de 5.300,00 27,5% 1.011,25

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