Entrevista | José Roberto Afonso | Economista

Economista critica forma apressada com que o Congresso vem aprovando emendas

Coautor da Lei da Responsabilidade Fiscal critica a omissão do Executivo ao populismo do Legislativo em matéria tributária e compara o regime atual à "festa da Ilha Fiscal". Ele defende novas regras a fim de conter o excesso de PECs

Vicente Nunes - Correspondente
postado em 10/07/2022 07:00
 (crédito: Marcos Oliveira/ Agencia Senado)
(crédito: Marcos Oliveira/ Agencia Senado)

Lisboa, Portugal — Um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o economista José Roberto Afonso se diz assustado diante da forma apressada com que o Congresso, com o apoio do Executivo, vem aprovando emendas constitucionais. Das nove propostas que estão ou passaram pelo Parlamento neste ano, sete tratam de temas fiscais e tributários. "Esse ativismo legislativo decorre de um fracasso, de uma falência, de uma lacuna do Executivo. Na medida em que o governo não governa, o Congresso passa a ocupar espaço, com excesso de emendas constitucionais em matérias tributárias, em matérias fiscais, que são áreas de competência próprias do poder Executivo", afirma.

Para Afonso, pesquisador da Universidade de Lisboa e professor do IDP, a chamada PEC Eleitoral ou Kamikaze — a Proposta de Emenda Constitucional n°1/22, aprovada no Senado e em análise na Câmara e que amplia os gastos em quase R$ 41,2 bilhões —, deveria ser "o último baile da Ilha Fiscal", numa analogia à festança promovida pela Corte de Dom Pedro II uma semana antes da Proclamação da República. "Não estou aqui dizendo que todo mundo tem que cair, nem governo, nem regime político. Mas o regime fiscal que temos hoje é uma festa igualzinha ao último baile do império. Que o exagero que foi feito agora, com interesse eleitoral, que essa exibição de poder seja o último ato", diz.

Na opinião do economista, os sinais passados aos investidores são péssimos, pois as mudanças constantes na Constituição, para se manter no poder ou conquistar o poder, consolidam a sensação de insegurança, minam o futuro e, consequentemente, prejudicam a economia.

Afonso, em parceria com Leonardo Ribeiro, especialista em contas públicas, defende a reconstrução do arcabouço fiscal no Brasil. "O que estamos propondo é que esse quadro de referência cubra toda a matéria fiscal para consolidar e para dar mais harmonia e estabilidade, e não o que estamos vivendo hoje, em que se aprova emenda constitucional a qualquer momento, de qualquer jeito", diz o professor. Veja os principais trechos da entrevista concedida ao Correio.

Estamos vendo um movimento muito pesado em torno da PEC Eleitoral, que resultará em gastos fora do teto de R$ 41,2 bilhões. Essa farra é justificável?

Certamente, não. O que temos é uma questão imediatista, em particular eleitoral, que está pautando mudanças, inclusive, no texto constitucional, que trata de aspectos estruturais, institucionais, de médio e longo prazos. Ou seja, é justamente o oposto do que estamos vendo. E ninguém está tentando esconder nada, faz tudo com a finalidade de ganhar as eleições. Não se devia misturar motivação eleitoral com mudanças estruturais e com distorções e sinalizações muito importantes do ponto de vista fiscal.

A PEC atinge em cheio a Lei de Responsabilidade Fiscal?

Afeta na questão dos sinais. O que está se dizendo é que vale tudo na área fiscal a pretexto de você se manter no poder ou de ganhar o poder. Isso é muito ruim.

Qual o impacto da PEC Eleitoral do ponto de vista econômico? Num primeiro momento, vai despejar dinheiro na economia, mas, mais à frente, resultará em mais inflação. É isso?

Já temos um problema de inflação alta. O mundo inteiro está sofrendo com isso. Mas eu insisto: a coisa que mais me preocupa na economia não é apenas aumentar gastos, tornar sem controle qualquer emenda de teto de gastos. O pior é a sinalização de expectativa, de cultura. Isso cria insegurança para os investidores, cria insegurança para os próprios administradores públicos, porque, na verdade, a qualquer momento, pode-se mudar qualquer coisa. E o Brasil está aprovando emendas constitucionais num ritmo que deveria ser de medida provisória. Isso, para mim, é o pior, é a questão cultural, de expectativas. Por conta disso, a meu ver, o Brasil terá de fazer uma mudança de rota muito forte nos próximos meses.

O ativismo do Congresso na questão fiscal é excesso de poder?

É inegável que há um ativismo muito forte do Legislativo, como nunca tivemos desde a promulgação da Constituição. Isso vem criando problemas nas áreas orçamentárias e fiscal. Esse ativismo legislativo decorre de um fracasso, de uma falência, de uma lacuna do Executivo. Na medida em que o governo não governa, o Congresso passa a ocupar espaço, com excesso de emendas constitucionais em matérias tributárias, em matérias fiscais, que são áreas de competência próprias do poder Executivo.

E fala-se em excesso de ativismo do Judiciário...

Em relação ao Judiciário, há uma miopia. O Judiciário não é causa, é consequência. Quanto mais matérias se coloca no texto constitucional, quanto mais emendas são aprovadas, maiores serão as demandas no Supremo Tribunal Federal (STF), que é a Corte que decide sobre matérias constitucionais. O STF está se posicionando mais do que antes, mas isso é consequência do Legislativo mais ativo e a forma como ele está legislando, usando e abusando de emendas constitucionais, em particular, em torno de matérias tributárias e fiscais. Fora isso, nós vivemos em uma Federação bastante descentralizada. E o que temos assistido, com essa emenda do ICMS (que impôs um teto do tributo sobre combustíveis), é mais eloquente.

Por quê?

Como dizem os espanhóis, não se está fazendo uma concertação. Não se conversa, não se negocia, não se pactua. O que está sendo feito no Brasil é o contrário. O Congresso Nacional tem adotado medidas que não só se valem de um governo federal inoperante, como passou a avançar para cima de governos estaduais e municipais e das Assembleias Legislativas. Esse caso do ICMS é eloquente. O Congresso não tirou poder apenas dos governadores, tirou também poder das Assembleias Legislativas, porque o ICMS depende de leis estaduais. Então, na hora que se diz que a lei é nacional, não estadual, está se esvaziando não só os governadores, mas também as Assembleias Legislativas.

E o Supremo é levado a agir, por meio da judicialização.

Nesse caso, o Supremo é chamado para fazer a concertação da Federação, o que deveria ter sido feito no início. Em tese, por princípio, esse deveria ser o papel do Senado Federal, que tem funcionado muito menos como a Casa da Federação e muito mais como a segunda Casa que compete com a Câmara. Não digo só pelas decisões, mas pelos próprios debates, que não buscam a pactuação, a negociação. Por isso, o Supremo está sendo cada vez mais ativo, inclusive arbitrando nas relações entre Poderes.

O pior é que muito do que está sendo aprovado pelo Congresso é incoerente e inconsistente...

Como se aprovam muitas emendas e, muitas vezes, matérias fiscais de forma inconsistente, incoerente, com textos mal escritos, cabe ao Supremo arbitrar o que vale. A sensação que tenho é de que todos sabem que tudo vai parar no STF, os próprios parlamentares relaxam, escrevem qualquer coisa e, depois, veem se passa no Judiciário.

Certamente, isso não é bom...

Nós já tínhamos um sistema tributário complexo demais, agora, tornou-se inseguro. Para os investidores, o problema maior não é o tamanho da carga tributária e nem tanto a complexidade, mas a insegurança, que é o pior dos mundos para a economia. Hoje, o Brasil tem um sistema tributário totalmente inseguro pelo que se decidiu e pelo sinal que se está passando. Por isso, minha maior preocupação com a PEC Eleitoral, que muitos chamam de Kamikaze, mas eu a defino como "o último baile da Ilha Fiscal", é de que se está passando o sinal de que as regras podem mudar a qualquer momento, o Supremo tenta consertar e, se não fizer isso, muda de novo. Para o investidor, significa que o futuro se tornou totalmente incerto.

O que o senhor quer dizer mais precisamente com "o último baile da Ilha Fiscal"?

Prefiro chamar a PEC (Eleitoral) aprovada pelo Senado (e em análise pela Câmara) de "o último baile da Ilha Fiscal", que foi a festança dada pela Corte de D. Pedro II. Uma festa tão luxuosa, de ostentação, para dizer que o Império estava firme, forte, poderoso, rico, que mandava em tudo e em todos, mas, uma semana depois caiu e chegou a República. Não estou aqui dizendo que todo mundo tem que cair, nem governo, nem regime político. Mas o regime fiscal que temos hoje é uma festa igualzinha ao último baile do Império. Que o exagero que foi feito agora, com interesse eleitoral, que essa exibição de poder seja o último ato, o último baile desse império, e que possamos, a curto prazo, fazer não reformas, mas a reconstrução do arcabouço fiscal, pois o que temos não serve mais.

O que é preciso fazer?

Tem que construir algo novo, com uma administração pública transparente, radicalmente moderna, em que qualquer cidadão, onde quer que esteja, possa acompanhar tudo. O maior exemplo de que isso pode ser feito tecnologicamente são as urnas eletrônicas. O processo de eleição digital é made in Brazil, e não tem nenhum país do mundo que faça uma eleição do tamanho da nossa, com a segurança que tem. São quatro eleições ao mesmo tempo. Processo seguro, moderno e barato. Então, do ponto de vista fiscal, a eleição digital, a urna eletrônica, é um primor. É a nossa meta. Precisamos que o setor público seja assim. Temos condições, mas falta vontade política.

Sobre a emenda que tabelou o ICMS, da forma como o senhor colocou, os próximos governadores terão poder muito limitado para agir?

Houve uma sucessão de decisões tomadas em Brasília, seja no Legislativo, seja no Judiciário, que transformaram o ICMS em um imposto federal. Não só tiram poder dos governadores, como, praticamente, transformam as Assembleias Legislativas em algo irrelevante e afetam também os prefeitos, que são sócios do ICMS, a educação e a saúde públicas. O que vejo mais é uma preocupação conceitual: até onde Brasília pode interferir em um imposto que é dos estados.

Por que diz isso?

O que Brasília fez foi dizer: agora, eu decido o que é essencial, qual é a alíquota que pode ser cobrada. Na verdade, o que Brasília fez foi botar o teto no ICMS, o que é paradoxal, pois se acabou com o teto de gastos e se criou um teto para impostos. O que se está dizendo é: vocês não têm mais autonomia. Se é para fazer isso, que se faça direito, como no resto do mundo, acaba com o ICMS estadual e cria um IVA nacional, com regra de partilha. Usei o termo nacional, porque é da Nação, não federal.

Uma reforma tributária teria evitado isso?

Não. E digo, ainda bem que não foi feita a reforma tributária, porque está claro que, do Congresso ao Executivo e ao Judiciário, não se sabe o que é um imposto sobre valor agregado. Em muitas das decisões e das declarações que foram dadas, isso foi ignorado. Deu-se, por exemplo, subsídios para o diesel, cujos impostos são recolhidos pela Petrobras, no que se chama de substituição tributária. Se os estados decidirem retirar da Petrobras essa cobrança e passarem a cobrar diretamente em cada ponto do consumo, será uma loucura. Por isso, reforço: a pressa de tomar de decisões conjunturais e a ignorância de conceitos tributários fazem com que os problemas sobrem para os contribuintes.

 

O senhor critica o ativismo do Legislativo, mas o papel de deputados e senadores foi importantíssimo durante a pandemia...

Eu acho interessante ter um Congresso ativo. E é verdade que, quando entramos na pandemia, o Legislativo brasileiro foi um dos poucos que não pararam de funcionar. E aprovou uma emenda constitucional do Orçamento de Guerra, dando um sinal de apoio ao Executivo. Isso é bom, mas me parece que tem havido um certo excesso, que, creio, seja conjuntural. Não sou cientista político, mas, de novo, acho que esse excesso decorre de um governo que não governa. O Congresso passa não só a legislar, mas a avançar nas questões executivas. E o melhor retrato disso é, sobretudo, a questão orçamentária. É quando no Orçamento, que é um peça-chave na democracia, o governo se torna uma mera peça carimbadora de papéis.

Mas as discussões sobre o Orçamento nunca foram prioridade no Brasil...

Sim, as discussões sobre as nossas prioridades nacionais já eram pobres, mas, agora, o governo passou a aceitar, volto a insistir, a missão de mero carimbador do que é decidido no Congresso. Na minha opinião, tem um pecado capital nesse processo: antes, você podia perdoar, dizer que era um pecado irrelevante, pois não se tinha um Congresso impondo decisões orçamentárias sem a devida transparência e sem o devido debate público. O pecado capital, para mim, está na Constituição de 1988.

Por quê?

Na primeira fase da Assembleia Constituinte, das comissões temáticas, a maioria dos líderes trabalhou com o modelo de um país que seria parlamentarista. Em particular, os principais líderes de matérias econômicas, fiscais, eram majoritariamente defensores do parlamentarismo. Então, sob essa ideia, desenhou-se um capítulo tributário preparado para esse regime de governo, no qual o Congresso manda, mas tem o ônus e o bônus. Tem o bônus de nomear o novo governo, mas o de sustentar e ser responsável por aquilo que o governo está fazendo. No meio da Constituinte, o Centrão, que era muito melhor do que o atual, em aliança com os partidos de esquerda, como o PT de Lula e o PDT de Brizola, aprovou um regime presidencialista. Mudou-se, então, o capítulo de organização de governo, de Estado, mas ninguém mexeu nos capítulos tributário e de Orçamento. Ficaram praticamente intactos. Então, temos um pecado capital, uma Constituição que em matéria orçamentária e tributária é parlamentarista num regime presidencialista.

Qual a consequência disso?

Passaram-se 30 anos, e isso sobreviveu. Mas, antes, o que se definiu em 1988 tinha uma lógica, uma coerência, uma consistência. Agora, isso, a meu ver, foi perdido por causa do excesso de emendas constitucionais que foram aprovadas. Acho, inclusive, que parte desses problemas começou na emenda do teto de gastos, quando se passou a imagem de que um regime fiscal que limita as despesas resolveria tudo. Não existe em nenhum lugar do mundo um regime fiscal que trata apenas de uma variável. Essa é uma simplificação. Pode-se ter teto de gasto, mas é preciso combinar com as receitas, com a dívida, com o patrimônio. É um conjunto de regras. Como no mercado financeiro. Duvido que algum banco vá dar um empréstimo só perguntando a seu cliente se ele controla as despesas. Essa simplificação não é boa, a regra não pode ser isolada.

A simplificação, por
sinal, ficou explícita no debate em torno do tabelamento do ICMS, não?

Com certeza. O discurso foi o de dizer que os estados estavam com dinheiro em caixa e não precisavam de tantas receitas. Primeiro, tem que perguntar se o dinheiro em caixa é suficiente para cobrir todas as despesas, a dívida. Outra ironia: se há um estado quebrado, como o Rio de Janeiro, sem nenhum dinheiro em caixa, esse estado está bem? O que estamos dizendo agora é o seguinte: só o caixa importa. Mas tem a contradição absurda de que é preciso fazer ajuste fiscal e punir quem economizou. Ou seja, está se dizendo aos governadores e aos secretários estaduais de Fazenda de hoje e do futuro para que torrem tudo, não deixem mais dinheiro em caixa, gastem alucinadamente. É o oposto do teto de gastos. O tamanho do seu caixa não quer dizer nada isoladamente. Então, temos uma simplificação de algo que não é simples por natureza. Toda matéria tributária, orçamentária, não é simples. E leva a essa sucessão de emendas constitucionais que não tem paralelo nem na história brasileira nem no mundo, não se tem responsabilidade nenhuma. E volto a dizer: quanto mais ativo for o Supremo, menor é a preocupação do Congresso com a técnica redacional, com a consistência e a coerência das matérias.

Esse tsunami legislativo está estimulando um Brasil
contra o Brasil?

É lei contra lei. E volto a insistir, temos um governo que não governa e precisamos que o governo governe. A gente precisa de um Congresso Nacional que tenha mais transparência, coerência e responsabilidade.

Como um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal, dá para dizer que ela acabou, como o teto de gastos, que não durou nada?

A Lei de Responsabilidade Fiscal é uma lei de princípios, não de contas públicas, que acreditávamos que viria em seguida. Mas, com certeza, e LRF continua viva. Não é o ideal, pois continua incompleta 20 anos depois. Tem vários aspectos da lei que não foram adotados, teto de gastos, revisão periódica de gastos, conselho fiscal, premiação para governadores e prefeitos eficientes. Mas o mais importante nisso tudo, na minha opinião, é levar a Lei de Responsabilidade Fiscal para o código, acrescentar o que faltou ser normatizado e avaliar que muito do que está ali não está sendo cumprido. É muito importante envolver nesse processo os tribunais de contas, o Ministério Público, o Judiciário.

Há etapas a cumprir, então.

Costumo dizer que, se a LRF não é uma pirâmide do Egito que se constrói e fica ali parada, precisa ser modernizada e se tornar mais eficiente. Mas eu acho que ela não só sobreviveu, como a estruturação e a lógica dela ainda são as mais adequadas. Tanto é que, se formos ver o debate europeu, de que vários países não estavam cumprindo as regras fiscais antes da pandemia, a proposta é de uma construção próxima do que é a estrutura da Lei de Responsabilidade Fiscal brasileira. Agora, vale ressaltar que o que temos hoje (no Brasil) é a calamidade de governo, e não há lei de responsabilidade fiscal que sobreviva a isso.

O senhor tem proposto, com outros especialistas, como Leonardo Ribeiro, um novo arcabouço fiscal no Brasil. O que é isso?

Estamos propondo fazer um novo código fiscal. Tivemos um Código de Contabilidade Pública que, curiosamente, está completando 100 anos. As autoridades se preocuparam em organizar a contabilidade pública, criaram o Tesouro Nacional, que depois some, e ordenaram como se fazia as contas. Tudo muito direito, de inspiração portuguesa. Na Constituinte, o hoje senador José Serra, que foi o relator da matéria fiscal, chegou a usar, em seu relatório, a figura do código de finanças públicas. Quando foi para sistematização, disseram que não poderia usar a palavra código na Constituição, então, virou lei complementar de finanças pública, que é a origem da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Por que esse código fiscal é importante?

O código não é um uma lei qualquer, nem uma lei complementar qualquer. Pouca gente sabe disso. Pelo que está na Constituição, o código é uma lei que consolida várias medidas e regras em torno de uma matéria, que tem uma tramitação especial dentro do Congresso. Para se ter uma ideia, não se pode tramitar mais que dois projetos de códigos simultaneamente. E, também, não se pode aprovar mais do que dois (em um ano). Isso quer dizer que, ao contrário do que possa parecer, é mais difícil aprovar um código do que emendas constitucionais. Somente neste ano, de nove emendas constitucionais, sete tratam de matérias orçamentárias e fiscal. Isso porque estamos no meio do ano.

A tramitação de código fiscal evitaria essa farra tributária?

O código força o Legislativo a ter uma tramitação mais lenta, porque exige mais discussão, e tem de juntar todas as propostas referentes à mesma matéria num só lugar. Ao juntar, mesmo que não mude nada do que está valendo, será forçado a buscar coerência, consistência em relação ao que se tem hoje na Constituição e em leis complementares. E, também, cobrir o furo. O mais importante de tudo é que estamos falando em Orçamento público, aprovando emendas como a que coloca um teto para as despesas. Só que a emenda não define despesas. As despesas são definidas numa lei de 1964, a 4.320. Ela foi decretada 15 dias antes do golpe militar. Quer dizer: teve o golpe militar, acabou a Ditadura Militar, restabeleceu-se a democracia e continuamos tratando as contas e as coisas públicas com uma lei que tem mais de meio século. Isso não tem cabimento nenhum.

E o Congresso não toma providências.

Ninguém no Congresso se interessa por isso porque é uma matéria técnica e, o principal, na hora que se tiver uma lei regulando, colocando princípios sobre como se faz o Orçamento, não se terá a liberdade de hoje para se fazer o Orçamento como se bem entender. É logico que a lei virá do Congresso, sujeita à sanção presidencial, podendo ser questionada no Supremo, mas será uma lei que coloca uma parametrização. O que estamos propondo é que esse quadro de referência cubra toda a matéria fiscal para consolidar e para dar mais harmonia e estabilidade, e não o que a gente está vivendo hoje, em que se aprova emenda constitucional a qualquer momento, de qualquer jeito, o que faz com que os ordenadores de despesas nem saibam o que vale e o que não vale e o que é mais adequado.

Isso explica a péssima qualidade dos gastos públicos no país?

Primeiro, falta uma boa regulação de instituições coerentes, consistentes e modernas. Segundo, temos uma prática de administração pública que é, sobretudo, não ter muitas métricas, não definir direito o que é objetivo, meta. E, o mais importante, não avaliar e não reavaliar. O que foi feito, está feito. O mais normal é se ter o Orçamento implementarista, o que eu já gastei no ano passado vou continuar gastando e botar um pouco mais. O bom administrador é aquele que consegue, no mínimo, gastar mais do que gastou antes. E não há essa preocupação da avaliação. Não é só com o que se gastou, mas com que se gastou, quanto custou. Quanto custa um aluno na escola pública, um paciente sendo atendido pelo SUS, um deputado, um senador? Hoje, não se consegue chegar ao quanto custa, pois não se sabe como se apura corretamente a despesa, como coloca transparência. A avaliação do gasto público, combinando reformas constitucionais, está dentro do que estamos propondo: concentrar as atenções num código fiscal, com mudanças de práticas e premiação das gestões públicas bem-feitas.

Nesse processo, o uso da tecnologia pode fazer a diferença?

O Brasil pode colocar o Orçamento público dentro do celular, georreferenciado, no país inteiro, seja o do governo federal, seja os de estados e municípios. Com isso, quem estiver passando em frente a uma escola poderá ver quanto ela custa, quem está dando aula nela, quantos alunos. Tenho certeza de que o cidadão-eleitor mudará sua posição em relação ao governo, que passará a ter de se explicar. Para ser franco, o Orçamento, hoje, é quase secreto como um todo, não são só as emendas de relator. Tem o que a gente chama de Orçamento secreto e o resto que é uma caixa-preta, um negócio monstruoso, enorme.

O Orçamento é mal concebido?

O Orçamento brasileiro é um dos mais detalhados do mundo, mas não adianta ser tão detalhado se eu não consigo ver o que interessa. Ah, o parlamentar quer fazer emenda, tudo bem, pois foi eleito para defender a sua região. Mas ele tem de explicar o que foi que ele defendeu, a emenda foi para quê? O Orçamento georreferenciado permite comparações. O Brasil tem tecnologia para fazer isso. E em poucos países do mundo a população usa tanto internet no celular como aqui. É possível interagir com o poder público. Enfim, temos condições de combinar mudanças institucionais que fortaleçam as regras fiscais como um choque radical de governança pública.

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