Entrevista

'Bolsonaro é um criador de crises', diz Maílson da Nóbrega

Para economista e ex-ministro da Fazenda, pacote fiscal e queda dos combustíveis devem ajudar presidente, mas não reverte favoritismo de Lula

Em meio ao clima polarizado para as eleições deste ano e às confusões provocadas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) — que chegou até a falar mal do sistema eleitoral do país para embaixadores de mais de 70 países —, o economista e sócio da Tendências Consultoria Maílson da Nóbrega é taxativo ao falar sobre o que classifica de despreparo do chefe do Executivo para o cargo. "O Brasil não aguenta mais quatro anos de Bolsonaro", frisa.

"Um presidente, para liderar um país, deve ser uma fonte de previsibilidade, uma fonte de segurança, um farol para sinalizar os passos futuros do país e do governo. Bolsonaro é um criador de crises", destaca Maílson ao citar a polêmica reunião com embaixadores no último dia 18.

O economista assinou, ontem, a carta em defesa do Estado democrático organizada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), que reunia, no início da noite, quase 790 mil adesões. "As instituições estão sendo postas à prova. Ele (Bolsonaro) provocou e as instituições responderam."

Na avaliação do ex-ministro da Fazenda, a inflação não deve ceder facilmente e o pacote fiscal de R$ 41,2 bilhões aprovado pelo Congresso com a PEC Eleitoral ou Kamikaze vai ajudar a pressionar a inflação do próximo ano. Para ele, a situação fiscal é "muito frágil e periclitante". Aliás, Maílson não vê a economia decolando, como costuma dizer o ministro da Economia, Paulo Guedes, devido ao aperto monetário do Banco Central, que manterá a taxa básica da economia (Selic) em dois dígitos até o fim de 2023. "Como é que um país decola se vai cair a taxa de crescimento no próximo ano?", questiona. "É um avião que levanta voo e despenca", emenda. Pelas projeções da Tendências, o Produto Interno Bruto (PIB) do país deverá crescer 1,7%, neste ano, e, no ano que vem, desacelerar para 0,4%. A seguir, confira os principais trechos da entrevista concedida ao Correio Braziliense:

As eleições deste ano estão chegando e estão bastante polarizadas, como o senhor avalia a corrida presidencial?

Olha, a menos que haja a atuação do Sobrenatural de Almeida, um personagem do teatrólogo Nelson Rodrigues, que é aquela figura que aparece e muda o jogo, ou seja, o surpreendente, tudo indica que Lula ganha. Bolsonaro tem tido uma capacidade impressionante de perder apoio. Em 2018, o Sobrenatural de Almeida foi a facada. Lá na Tendências, achamos que Bolsonaro vai subir nas pesquisas e o Lula pode estagnar, mas dificilmente isso reverte o favoritismo de Lula. O que pode acontecer é outra coisa: a gente acha que não decide no primeiro turno.

Em um eventual segundo turno, Bolsonaro não pode virar o jogo?

Acho que não. Bolsonaro tem uma rejeição de mais de 60%. Nenhum presidente se elegeu no Brasil com mais de 40% de rejeição.

Mas Lula tem 40% de rejeição…

Exatamente. O desafio dos dois, mas é mais do Bolsonaro do que do Lula, é reduzir a rejeição. A experiência mostra que a rejeição do candidato a presidente é um dos fatores mais determinantes do resultado das urnas. Acho que uma parcela expressiva de beneficiários do Auxílio Brasil (programa que substituiu o Bolsa Família) vai votar no Lula. No Nordeste, há uma identidade muito profunda desses beneficiários com o Lula. Passaram por situações semelhantes, como problema com o pai, pobreza, fome e o Lula sabe falar a linguagem desse eleitor. Além disso, tem uma coisa também curiosa: o governo não conseguiu mudar todos os cartões. Então, uma parte do pessoal do auxílio emergencial está usando ainda o cartão com o nome Bolsa Família. E, na reta final, ainda podemos ter o processo do voto útil. Muitos brasileiros ainda têm a ideia de que não podem perder o voto.

Existem muitas pessoas que preferem votar contra Bolsonaro e tudo o que ele representa em termos de retrocesso no país…

Então, o Brasil não pode ter mais quatro anos no Bolsonaro. Ele já demonstrou que não sabe governar, que não entende como funcionam as instituições, não tem o maior apreço pela liturgia do cargo. E, toda semana, tem uma declaração incrível.

Já houve três episódios de contingenciamento do Orçamento deste ano sob a desculpa de respeitar o teto de gastos. Mas, considerando o que o governo tem sinalizado, a regra do teto já foi destruída, pois apenas a PEC Eleitoral criou um extra teto de R$ 41,2 bilhões....

É uma contradição impressionante. O ministro (Guedes) acha que temos uma situação fiscal sólida.

O senhor concorda com ele?

Não. Ninguém concorda. Quem conhece o mínimo da área não concorda. Pelo contrário, a situação orçamentária é muito frágil. A situação fiscal é muito frágil e periclitante. O país pode desandar se não resolver o problema do ano fiscal.

Guedes tem uma máxima no discurso de que vai encerrar o mandato com uma despesa menor, em relação ao PIB, do que recebeu. Isso é uma prova que o fiscal melhorou?

Isso não foi esforço do governo. Eu diria o seguinte: não decorreu do esforço fiscal do governo. Pelo contrário, o governo fez tudo para piorar e essa diminuição decorre do que ainda restou do teto. Também decorreu de três anos sem reajuste de salário para funcionário público e do calote dos precatórios.

Essa dívida judicial foi empurrada para debaixo do tapete e pode virar uma bola de neve…

Ela não entra na conta e ninguém mais está vendo. Então, o governo entrega uma situação fiscal com gasto em relação ao PIB um pouco menor por conta de manobras fiscais e não de um esforço para uma consolidação fiscal. O ministro Paulo Guedes vive em um mundo paralelo.

Ele foi muito aplaudido pela plateia da Expert XP, em São Paulo…

Tem muito bolsonarista no mercado financeiro, onde é natural bater palmas. É raríssimo o caso em que alguém do mercado financeiro fala mal do governo. Quando fala, é demitido. O ministro falou diante de convertidos ou de gente que prefere aplaudir o governo do que criticar. Faz parte do ambiente.

O ministro estava incomodado por não fazer a reforma do Imposto de Renda. Mas ele não chegou a apresentar uma proposta completa de reforma tributária, apenas pedaços…

Respeito muito o Paulo Guedes. Ele tem um doutorado em uma das grandes universidades do mundo, que é a Universidade de Chicago (nos EUA). Foi uma pessoa razoavelmente bem sucedida no mercado financeiro, mas ele teve uma avaliação incorreta do papel de ministro do governo. Ou seja, ele confundiu a quantidade com qualidade. Para ser poderoso, ele imaginou que o melhor era ter cinco ministérios sob seu comando. Delfim Netto, que foi o mais poderoso ministro da Fazenda da história, foi só o ministro da Fazenda. Ele já perdeu dois ministérios importantes: Trabalho e Previdência e vai perder Indústria e Comércio (MDIC) e Planejamento, porque não foi capaz de avaliar duas coisas. A primeira, as restrições para privatizar no Brasil. Os brasileiros não compraram a ideia de que Banco do Brasil e Petrobras podem ser privatizados. A segunda, ele parece ter comprado uma tese muito comum no mercado financeiro e em outras áreas de atividade econômica, que o relevante para um bom governo, é o bom ministro da Fazenda. Mas quem é relevante é o presidente da República. Contudo, Bolsonaro não entende qual é o papel do presidente no sistema político. O ministro pode ir ao Congresso para expor suas ideias e debater. Mas negociar não é o território dele. E Guedes tem uma ideia absolutamente equivocada de querer recriar a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira).

Por causa disso, ele nunca mandou a proposta de reforma completa…

Sim. A CPMF é rejeitada por 10 entre 10 economistas que estudaram o mínimo desse assunto. Guedes continua tendo a visão cor de rosa de muitas coisas. Por exemplo, ele anda dizendo que o Brasil está preparado para se beneficiar da redefinição das cadeias mundiais de suprimento, porque estamos mais próximos. E, nesse sentido, a Venezuela é mais competitiva do que o Brasil, e a Nicarágua, mais ainda. A decisão de investir leva em conta a proximidade diante dessa mudança de paradigma da globalização, em que o risco geopolítico passou a ter relevância. Mas outros fatores são levados em conta: a estabilidade, a previsibilidade. Num governo que ataca as instituições, que não sabe como o governo funciona, se os analistas de risco político forem consultados muitas dessas empresas não virão ao país, porque elas não vão contar com a previsibilidade. E se consultarem especialistas no campo fiscal, vão ver um problemão daqui para frente.

Guedes costuma falar que os analistas estão errando muito nas previsões do Brasil. O senhor acha que o país está mesmo decolando como o ministro costuma afirmar?

Claro que não. Como é que um país decola se vai cair a taxa de crescimento no próximo ano?

Que recuperação em V é essa que ele tanto fala?

É um avião que levanta voo e despenca. A mediana das projeções do mercado para o PIB, em 2023, é de (crescimento) em torno de 0,40%, no Focus (do Banco Central). Essa também é a projeção da Tendências. E tudo indica que a economia vai desacelerar. A política monetária está se tornando restritiva a partir de agora. Uma decisão de política monetária leva de três a cinco trimestres para fazer efeito sobre a atividade econômica e, depois, as condições financeiras devem piorar. Os economistas podem errar, porque o trabalho de projeções econômicas não é a ciência exata. Não é como a física. Tudo é feito com base em modelos econométricos, que levam em conta pesquisas, experiência, troca de informações entre participantes. Mas, na maioria dos casos, o grau de acerto é maior do que o de erro. As projeções sinalizam uma tendência.

A inflação não vai cair tão fácil, apesar da queda no preço dos combustíveis em plena campanha eleitoral?

É claro que vai baixar por esse artifício dessa intervenção no federalismo que é absolutamente inconstitucional e que feriu o pacto. Mas o Congresso fez vista grossa disso para beneficiar o Bolsonaro. É um alívio que tem tempo para terminar. Em janeiro, volta tudo.

Esse impacto é de, no mínimo, um ponto percentual a mais no IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) de 2023…

Exatamente. Além disso, embora o Banco Central não reconheça, a maioria dos analistas entende que a inércia inflacionária ficou mais forte. E, quando ela fica mais forte, o custo e o tempo para reduzir a inflação são maiores. Por isso, que, embora a inflação continue declinando por força do estágio restritivo da política monetária, o BC não vai cumprir a meta no próximo ano. Nossa projeção para o IPCA passou de 8,5% para 7,9%, neste ano, e, no ano que vem, é de 5% (acima do teto da meta, de 5% e de 4,75%, respectivamente). Mantivemos a Selic em 14%, no fim deste ano, e estamos prevendo 11%, no fim do ano que vem.

O que significa para a economia do Brasil encerrar dois anos seguidos com Selic de dois dígitos?

As consequências são clássicas: piora das condições financeiras decorrentes do aumento da taxa de juros inibe a tomada de crédito e, portanto, a demanda e o investimento. Muitas empresas adiam os investimentos, porque ele se torna inviável com a taxa de juros nesse nível. Isso pode significar uma perda do dinamismo do mercado de trabalho. A geração de emprego arrefece.

Falando em mercado de trabalho, Guedes falou que vamos terminar o ano com uma taxa de desemprego em 8%. Isso é possível?

Olha, eu não conheço ninguém fazendo essa projeção. A nossa está em 9,8%, se eu não me engano. O emprego está crescendo no setor de serviços, mas a indústria está desacelerando. A indústria caiu em junho e está abaixo do período pré-pandemia. A indústria extrativa deve desacelerar muito. No linguajar dos economistas, é um cenário desafiador, que é um nome para substituir o pessimista.

E dá para ser otimista?

Olha, se você for pensar nas condições estruturais do país, a gente ainda pode continuar a almejar ser um país rico no futuro. O Brasil tem instituições sólidas que são fundamentais para a preservação da democracia e a democracia é essencial para a prosperidade. As instituições estão sendo postas à prova. O Bolsonaro está prestando um serviço ao país nesse campo. Ele provocou e as instituições responderam. Instituição é um conceito bem amplo. E, com essa mobilização de empresários, de acadêmicos, pessoal da área de ciência de sindicatos, é uma coisa bem ampla. Tem efeitos de transbordamento, porque estimula outras pessoas a pensar até para se mobilizar. Por exemplo, no discurso de Bolsonaro perante os embaixadores, uma demonstração assim inacreditável de desprezo pela liturgia do cargo. O presidente só fala do embaixador para receber as credenciais. Bolsonaro convocou os embaixadores, por iniciativa dele, não só para romper essa hierarquia, mas para falar mal do Brasil.

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