Entrevista | José Roberto Afonso | economista

"O debate é sobre crescimento", avalia um dos pais da Responsabilidade Fiscal

Um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal, o especialista diz que o teto de gastos não ajudou, em nada, a melhorar as contas públicas, pois permitiu irresponsabilidades de todos os tipos. Ele vê o Banco Central refém, e não independente

Vicente Nunes - Correspondente
postado em 20/02/2023 03:55
 (crédito:  Líbia Florentino/Divulgação)
(crédito: Líbia Florentino/Divulgação)

Lisboa — O economista José Roberto Afonso, um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), está convencido de que o Brasil não pode se furtar a discutir os rumos das taxas de juros, debate liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tem provocado muitos ruídos. Para ele, felizmente, o país saiu do "besteirol do cercadinho", no qual o ex-presidente Bolsonaro afrontava as instituições, para falar sobre crescimento econômico, com o qual a principal nação latino-americana precisa se reencontrar. Na avaliação dele, há uma avenida pela frente. "O Brasil tem ventos estruturais favoráveis, como há muito não se tinha, e como raros outros países têm. É preciso competência e ousadia para aproveitar as oportunidades", afirma.

Afonso acredita que o Congresso aprovará, sem traumas, o novo arcabouço fiscal que será apresentado, provavelmente, até o fim de março pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Para ele, as novas regras fiscais virão em boa hora, pois o teto de gastos, em vez de botar ordem nas contas públicas, funcionou, na prática, como irresponsabilidade fiscal, macroeconômica e política.

O economista, hoje pesquisador da Universidade de Lisboa e diretor do Fórum de Integração Brasil-Europa (Fibe), ressalta que, se realmente as contas públicas estiverem na UTI, como reforçam especialistas do mercado financeiro, ao menos já se tem a certeza de que os problemas não serão tratados com "cloroquina fiscal". Destaca, ainda, que o superavit primário, visto como principal indicador para avaliar a saúde das finanças federais, é mais uma medida financeira do que fiscal, para sinalizar ao credor do governo se ele conseguirá receber. "Porém, não se governa apenas para quem se deve", dispara, endossando as queixas de Lula ante a insensibilidade dos donos do dinheiro em relação ao social.

Afonso usa da ironia para se referir àqueles que têm uma visão puramente fiscalista e financista. "Os economistas de hoje conseguem modelar até o samba para o carnaval, mas esqueceram de juntar em um desfile todos os indicadores que apuram a consistência macroeconômica", assinala. Sobre o Banco Central, acredita que a independência conquistada em lei não funciona por culpa da própria instituição, que alimenta incertezas. "Às vezes, me parece que nosso Banco Central é dependente, para não dizer até refém, de um processo em que ele apura e divulga expectativas, que acabam por tolher sua autonomia", sentencia.

Ele reconhece a importância de o país promover uma reforma tributária, contudo, pondera que a discussão travada no governo e no Congresso está ultrapassada, pois olha para uma economia do passado e esquece a do futuro, o que exigirá novas mudanças no sistema de impostos mais à frente. A seguir, os principais trechos da entrevista que o economista concedeu ao Correio.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, prometeu divulgar, ainda neste primeiro semestre, um novo arcabouço fiscal. Como vê isso?

Sou realisticamente otimista que governo e Congresso aprovarão uma lei que viabilize a sustentabilidade da dívida pública no longo prazo. Está se repetindo a história da Lei de Responsabilidade Fiscal. Também foi o Congresso que exigiu e fixou prazo ao governo FHC para enviar projeto. Negociamos entre governos, ouvimos entidades da sociedade, e o projeto foi muito melhorado na Câmara. Era extenso e complexo, ninguém acreditava que seria aprovado, e passou com quórum de emenda constitucional. Tudo caminha para repetirmos esse processo e aprovar uma lei que acrescentará e fortalecerá ainda mais a LRF.

O teto de gastos funcionou a contento? Por que está sendo abolido?

Porque não limitou as despesas e, ao contrário, serviu para arrombar a porta aos gastos escolhidos, sobretudo para fins eleitorais. Na verdade, o teto de gastos era provisório, parcial. Na prática, só controlava pouco mais de 5% das despesas do governo geral no país. Na prática, funcionou como irresponsabilidade fiscal, macroeconômica e, sobretudo, política.

Como avalia a situação fiscal hoje do Brasil? Realmente, o quadro é grave, apesar do superavit primário em 2022 e da queda da dívida bruta para menos de 80% do PIB?

Se for grave ao ponto de o paciente estar na UTI, ao menos já se tem a certeza de que o governo não tratará com cloroquina fiscal. Redução e racionalização de gastos passam por digitalização integral do setor público. Modernizar também o regime fiscal, a partir de um controle maior da dívida, tende a ajudar as expectativas. Com 20 anos da LRF, as dívidas estadual e municipal caíram pela metade. Quem faz mais deficit e dívida é o governo federal, que nunca se submeteu realmente à LRF.

A questão fiscal está no centro do debate das taxas de juros. Por que política fiscal e política monetária estão tão atreladas?

São como irmãs gêmeas e siamesas. Uma não vive sem a outra. É um erro transformar debate em embate e, o mais importante, ignorar que ambas são partes subordinadas da política econômica, juntamente com crédito, câmbio, trabalho, indústria, inovação... Os economistas de hoje conseguem modelar até o samba para o carnaval, mas esqueceram de juntar em um desfile todos os indicadores que apuram a consistência macroeconômica, como o Ipea fazia na época em que não havia notebook ou inteligência artificial.

Pelo quadro fiscal de hoje, com inflação acumulada em 12 meses de 5,7%, há espaço para corte dos juros no Brasil?

Sim, há espaço para os juros se tornarem independentes e voltarem a ser instrumentos positivos do arsenal macroeconômico do país, manejados de forma consistente e harmônica. Crise só não vira oportunidade se o Brasil não for competente, porque tem a contribuição para o resto do mundo em torno da emergência climática, da transição energética, da regionalização da produção, fora a ausência de história ou ameaça de guerra. Se a natureza privilegiou o Brasil como poucos, não pode faltar a mínima inteligência humana para botar a máquina macroeconômica brasileira para funcionar e voltar a se desenvolver. Mas, se continuar como se só importa cada um cuidar do seu quadrado e do seu currículo, continuaremos a voar tanto quanto codornas.

A conta de juros voltou a crescer. Até que ponto isso contribui para agravar a questão fiscal?

Juros têm duas faces, como a moeda. Lógico que pressionam as despesas de maneira, muitas vezes, sufocante, mas também aumentaram a arrecadação tributária sobre ganhos financeiros e rendas. Aliás, até poderiam ser reestruturados para premiar quem poupa no longo prazo e punir quem especula no imediatismo. A depender da recalibragem das alíquotas, no saldo das contas, talvez esse até pode ser um caminho para reduzir o deficit e a dívida. Coerente com uma visão mais abrangente, uma tendência recente dos fiscalistas no mundo é chamar a atenção para o resultado operacional das contas públicas. Aliás, superavit primário é mais uma medida financeira do que fiscal, para sinalizar ao credor do governo se ele conseguirá receber. Porém, não se governa apenas para quem se deve.

Como vê o debate responsabilidade fiscal e responsabilidade social? Por quê?

O debate virou unanimidade. Todos defendem, agora, que precisamos, primeiro, avançar para aprovar atos legais, inovadores e nacionais, e, segundo, para transformar discursos em ações concretas, o que exige, particularmente, coordenar e mobilizar ações com os governos estaduais e, sobretudo, municipais, os mais responsáveis pelos serviços públicos universais na Federação brasileira. O setor privado também deveria avançar além da filantropia pontual ou do voluntarismo. Como o governo, poderia se inspirar em novos modelos adotados fora, a exemplo da inovação social, apoiando projetos que, no lugar de lucro ou juros, precisam render resultados com melhoras efetivas para população.

Como avalia as críticas do governo, em especial, do presidente Lula, aos juros altos e à independência do Banco Central?

Avalio que mudaram a agenda nacional para se debater questões cruciais, neste caso, para o crescimento do país, no lugar de um besteirol de cercadinho.

Há excesso de conservadorismo do Banco Central na definição dos juros?

Antes, resta perguntar: quem é mesmo que define os juros básicos no Brasil? Às vezes, me parece que nosso Banco Central é dependente, para não dizer até refém, de um processo em que ele apura e divulga expectativas, que acabam por tolher sua autonomia. Afinal, se todos ou quase todos estiverem a fazer uma aposta, ela se torna grande demais para levar uns à falência, que, se ocorresse, teria de ser resolvida justamente por quem resolveu apostar contra a manada.

Como avalia a mudança das metas de inflação para abrir espaço para queda dos juros?

Juros à parte, avalio ser esta uma ótima oportunidade para refletir sobre o regime de metas de inflação, assim como de metas fiscais. Precisamos modernizar e melhor conectar ambos regimes à luz de nossa política econômica. Aliás, é curioso comparar com a meta de resultado fiscal que, primeiro, é determinada por lei, e não em um ato de três ministros; segundo, tende a ser sempre cumprida, porque, se a receita fica aquém do previsto, o gasto é cortado; e, terceiro, as contas são julgadas pelos tribunais de contas, fora a auditoria interna, e nenhum deles pode conceder perdão. Autoridades monetárias deveriam ter exatamente o mesmo tratamento que as fazendárias, para fins de transparência, responsabilidade e controle.

O senhor acredita ser possível aprovar a reforma tributária ainda neste primeiro semestre? Por que essa reforma é importante?

Ainda é cedo para saber, porque houve uma renovação razoável nas duas Casas do Congresso, nem todas comissões e lideranças ainda foram montadas. Como todos pagam tributos, mesmo sem saber, só de acordar e ligar a luz ou abrir o chuveiro, a reforma é algo decisivo para a sociedade e para a economia. Isso poderia ser aproveitado para induzir a digitalização radical, não apenas dos governos, mas também dos contribuintes. Ao invés de começar a discutir textos legais, talvez fosse a hora de pensar inicialmente na forma como efetivamente serão apurados e cobrados os impostos, para depois se escrever os projetos. Também é preciso se preocupar com a tributação do emprego, da folha salarial e do empreendedorismo — para mim, é o desafio estrutural mais complexo da reforma tributária, e, por isso, poucos querem discuti-lo.

O caminho realmente é fatiar a reforma, começando pelos impostos sobre o consumo?

Fatiado ou não, é preciso ter a noção do todo. Ter uma estratégia nacional, firmar um pacto com a Federação e com as lideranças de contribuintes e, sobretudo, vincular a tributação a um plano de país. O imposto sobre consumo foi a base da reforma tributária dos anos de 1960, porque se preparou um milagre na economia que era baseado na produção e no consumo de bens industriais de massa, como automóveis a eletrodomésticos. Qual será o nosso futuro? Ele é que deve ditar a reforma do presente. E não estou vendo ainda nem o governo nem o Congresso com essa visão, o que arrisca daqui a alguns anos precisarmos de outra reforma tributária.

Quais as suas perspectivas para a economia brasileira neste ano?

Um ano de travessia. A pacificação política e social é prioridade. A economia virá a reboque, esperando que se volte a pensar, a planejar e a executar políticas macroeconômicas, no sentido pleno da palavra. Oportunidades não faltam.

Foi afastado o risco de recessão global. Até que ponto o mundo pode ajudar o Brasil?

Mais do que conjuntura, o Brasil tem ventos estruturais favoráveis, como há muito não se tinha, e como raros outros países têm. É preciso competência e ousadia para aproveitar as oportunidades.

A democracia no Brasil está ameaçada? Até que ponto a insegurança política atrapalha o Brasil?

A democracia saiu tão fortalecida que um dos autores do livro Porque as nações fracassam, o badalado economista Darom Acemoglu, se surpreendeu e opinou que a nossa transição política deveria servir de lição para os Estados Unidos.

Dá para acreditar no Brasil?

Sim. Dá para apostar. Mas, para tanto, precisamos com urgência promover a inclusão produtiva das grandes massas de desvalidos. O povo não quer esmolas e, sim, participar como geradores e consumidores das nossas riquezas. Só assim poderemos ser um país digno.

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