ENTREVISTA

"O brasileiro voa pouco", diz CEO da Latam

Executivo se diz otimista com a recuperação do mercado de aviação após a crise da pandemia. Mas reconhece desafios, especialmente tributários, para reduzir custos e democratizar as passagens aéreas - um dos objetivos do governo federal

Jerome Cadier contou como a empresa conseguiu sobreviver durante a pandemia -  (crédito: Carlos Vieira                           )
Jerome Cadier contou como a empresa conseguiu sobreviver durante a pandemia - (crédito: Carlos Vieira )
postado em 06/10/2023 06:00 / atualizado em 06/10/2023 10:19

Desde 2010, o mercado de transporte aéreo no Brasil oscila ao redor de 100 milhões de passageiros transportados por ano. Aumentar esse número, expandindo o acesso da população ao serviço passa por dois caminhos: reduzir o custo de operação das empresas e o preço das passagens. Em entrevista ao Correio, o CEO da Latam no Brasil, Jerome Cadier, conta como a empresa conseguiu sobreviver durante a pandemia, quando os aviões ficaram no chão e a companhia demitiu cerca de 6 mil funcionários no país. Cadier demonstra otimismo com os planos do governo para democratizar o acesso da população ao transporte aéreo. Ele comenta também derrocada das empresas de comercialização de milhas aéreas, segundo ele, “uma jabuticaba brasileira”. Leia os principais trechos da entrevista:

Qual é o seu diagnóstico para o setor de aviação?

Durante a pandemia, tivemos a pior crise da história da aviação comercial. Ninguém comprava passagens, as fronteiras estavam fechadas e todo mundo ficava em casa. Mas os custos não desapareceram. Isso gerou um prejuízo bilionário para todas as empresas no Brasil. Agora, os passageiros voltaram. No mercado doméstico, estamos operando mais voos e transportando mais passageiros do que em 2019. Já no mercado internacional ainda faltam uns 20% para voltarmos ao patamar de 2019.

Como as empresas enfrentaram a crise?

Havia duas maneiras: ou você tentava resolver no começo ou esperava os passageiros voltarem para conseguir se reestruturar. A Latam se reestruturou no começo, porque percebemos que a crise ia ser longa. A empresa entrou no Capítulo 11 da legislação norte-americana, o que, basicamente, permitiu à companhia renegociar todos os contratos, reduzir a dívida e ter um caixa mais robusto. A empresa saiu mais forte. Voltamos a liderar o mercado doméstico, o que não ocorria desde 2015. Abrimos rotas, colocamos uma frota mais nova e temos uma participação maior do tráfego internacional do que antes.

Vocês souberam se reinventar e crescer nesse momento de crise?

Foi um momento propício para renegociar contratos. Nós alugamos de grandes empresas globais de leasing a maior parte dos aviões que operamos. Em 2021, sobravam aviões. Quando você propunha renegociar contratos, elas não tinham para onde levar os aviões. Então, preferiam renegociar recebendo menos. Nós renegociamos os contratos para a vida toda do avião, capturamos o benefício para os próximos 10, 15 anos. E, hoje, temos um custo muito mais competitivo de leasing do que qualquer competidor. Reduzimos entre 30% e 35% em relação ao que a gente pagava antes da pandemia.

Muitos dos empregados desligados já foram recontratados?

A maioria já foi recontratada. Nós devemos chegar ao fim do ano com 19 mil funcionários no Brasil. Quando começou a pandemia, tínhamos 21 mil, e chegamos a 15 mil. Então, foram 6 mil desligamentos no ponto mais baixo.

Como o senhor está vendo o movimento do governo federal para democratizar as passagens aéreas?
Estamos otimistas. De 2010 a 2019, o setor não andou, e ainda estamos nos 100 milhões de passageiros. O Brasil é um país que precisa da aviação, mas o brasileiro voa pouco. São 100 milhões de passageiros para 200 milhões de habitantes, ou seja, 0,5 passageiro por habitante por ano. No Chile é 1,2. Na Colômbia, 0,9. Na Espanha, a relação é 4,5. Nos Estados Unidos, de 2,6.

E como têm sido as conversas com o governo? É possível voltar a ter passagens mais baratas?

O programa Voa Brasil pode ajudar, mas não é a grande alavanca para aumentar o volume de passageiros. Nos últimos meses, tanto o ministro do Turismo (Celso Sabino) quanto o ministro de Portos e Aeroportos (Silvio Costa Filho) mostraram vontade de ir além do Voa Brasil. Eles querem utilizar melhor a Embratur e pensar em como baixar o custo das empresas e o preço das passagens. O primeiro item de custo é combustível.

Quanto o combustível corresponde ao custo total?

No Brasil, representa 40%. Nos Estados Unidos, são 22%. Nós temos o combustível de aviação mais caro do mundo. Por vários motivos. Primeiro é o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre o combustível para voos domésticos, que não existe em nenhum lugar do mundo. Isso encarece o custo, na média, em 15% a 16%. Além disso, tem uma precificação que segue um modelo definido pela Petrobras que torna nosso combustível o mais caro do mundo. Outro fator é a judicialização. Quando o passageiro tem um voo atrasado ou cancelado, perde uma conexão ou tem algum problema com a mala, entra na Justiça. Em 70% das vezes se dá ganho de causa ao passageiro e se condena a empresa por dano material e dano moral. A Latam gasta mais de R$ 300 milhões por ano só em indenizações na Justiça.

Parte do preço da passagem embute esses custos?

Sim, de R$ 10 a R$ 15, porque a gente sabe que isso vai ser indenização lá na frente.

Mas não é melhor dar um bom atendimento ao passageiro e reduzir o preço?

A Latam é a companhia mais pontual do mundo. É a que menos cancela voos. Nosso índice de perda ou dano de bagagem é metade do índice americano e 30% mais baixo que o índice europeu. Agora, a gente tem uma Justiça que ignora a Convenção de Montreal, que define a indenização para caso de perda de bagagem e é seguida no mundo inteiro. Se você perder a bagagem, não venha me dizer que tudo era Louis Vuitton, Hermés, que tinha dois computadores, um terno Armani, que é isso que tem toda bagagem que é perdida no Brasil.

Como vocês avaliam a discussão de um novo combustível com menos emissões para a aviação?

Esse é um tema fundamental para a indústria da aviação mundial, que produz de 2% a 3% dos gases de efeito estufa. Ainda não se inventou para os aviões grandes, que carregam muito peso, uma solução econômica ou tecnicamente viável que substitua o combustível fóssil. Existe um combustível verde, o SAF, que é o sustainable aviation fuel (combustível sustentável de aviação), mas ele ainda não tem produção em escala. Menos de 0,01% do consumo mundial disponível é em SAF e ele é três vezes mais caro. Nós sinalizamos, por intenção própria da Latam, que, em 2030, vamos comprar até 5% do nosso consumo de SAF. Precisamos chegar, em 2050, à emissão neutra e, para isso, o mercado de SAF precisa se desenvolver monstruosamente no mundo inteiro. Até lá, também vamos compensar as emissões. Essa é uma solução que funciona muito para países como o Brasil.

Por que funciona muito?

Porque existe um desafio de preservação. Podemos utilizar o dinheiro da compensação para preservar os ecossistemas, não só o da Amazônia, mas de qualquer região do Brasil, como o cerrado ou o Pantanal. A gente já faz isso na Colômbia. E o que temos de diferente são a possibilidade de utilizar a compensação e uma sensibilidade maior aos preços do que o europeu.

Como assim?

O europeu está mais disposto a pagar mais para voar com SAF do que o brasileiro. Se eu disser ao brasileiro que ele vai pagar 50% a mais, ele não vai voar. Então, nosso risco de não desenvolver a aviação, de ter menos passageiros, menos emprego, menos turistas é muito maior do que na Europa. E quem está do outro lado, super interessado no SAF, é o agronegócio. E o interesse deles não é baixar o preço. Pelo contrário. E eles tem uma bancada muito mais forte que a da aviação.

Como o senhor vê o projeto que regulamenta o mercado de carbono, aprovado pela Comissão de Meio Ambiente do Senado, nesta semana?

Ele está na direção correta. Mas, numa lei complementar, será preciso dizer o que é compensação e se a evolução tecnológica conta ou não como compensação. Hoje, os aviões estão voando com motores muito mais eficientes do que a geração de sete ou oito anos atrás. Eles usam 30% menos combustível para fazer o mesmo trajeto, na mesma velocidade. Então isso tem que ser considerado.

O senhor mencionou o ICMS sobre os combustíveis, que é um dos maiores custos de operação. A reforma tributária vai ajudar a baixar esse custo?

A reforma tributária está na direção absolutamente contrária à redução de custos. Ela aumenta a carga tributária das companhias aéreas em R$ 11 bilhões por ano. As empresas pagariam 27,5% ou 27% e o Brasil seria o país com o maior IVA do mundo na aviação. Todos os países que já implementaram o IVA têm para a aviação uma alíquota diferente da alíquota geral. No Reino Unido, no Chile e nos EUA, é zero. Na Argentina, é de 10,5%. Se não tivermos uma correção desse texto, vamos ter um aumento de preço de 10% a 15%.

Quando as companhias aéreas começaram a cobrar a bagagem, dizia-se que haveria uma redução dos preços da passagem, mas na prática, não se viu isso.

O tema da cobrança separada da bagagem foi muito mal trabalhado e deixou uma impressão equivocada do efeito no preço. O efeito é de redução, mas ele não é imediato. O que reduz preço é custo e concorrência. O mundo inteiro cobra separado, porque é o modelo de concorrência das low cost. Se a gente não separar a bagagem da passagem, nenhuma low cost vai entrar no Brasil. Essa legislação mudou em 2017. Havia quatro companhias na época e uma quebrou, a Avianca, porque o mercado brasileiro estava super concorrido. Depois, os preços subiram, porque diminuiu a oferta naquele momento e começou a haver interesse de empresas de virem para o Brasil. Mas nove meses depois veio a pandemia.

Então, ainda não dá para avaliar a mudança?

Exatamente. E aí eu entendo a frustração de quem esperava que os preços fossem cair. O passageiro toma a decisão de viajar em cima do preço da passagem. Primeiro, decide se vai voar ou não e, depois, se vai com uma mochila nas costas ou vai levar uma, duas, ou três malas. As low cost trabalham jogando o preço lá em baixo, e, depois, cobram muito pela mala. Essa é a lógica, porque, jogando o preço lá embaixo, mais gente vai voar e, depois, decide se vai ou não levar mala.

Como vocês estão vendo a confusão do mercado de milhas, com empresas quebrando, como a 123 milhas, MaxMilhas? Isso tem afetado a operação da empresa?

Essa é mais uma jabuticaba brasileira. É um mercado que só existe no Brasil. E existe porque o regulamento de todo o programa de milhagem não é respeitado. Você não pode vender sua milha. Ela é para incentivar você a voar mais na companhia. O objetivo é a fidelidade, não ganhar dinheiro vendendo milhas. Mas, nós temos um Judiciário que permite que o cliente burle as regras do programa. Essas companhias estão com problemas financeiros porque vendiam um produto que não conseguiam entregar. Acho que a gente tem que parar de criar jabuticaba.

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