Carmen Souza
postado em 20/07/2025 06:00 / atualizado em 20/07/2025 06:00
. - (crédito: Arquivo Pessoal )
“Trançar é também escrever história”, afirma a pesquisadora Layla Maryzandra (foto). O entendimento que permeia a tese de mestrado que acaba de ser defendida na Universidade de Brasília (UnB) também é reconhecido nacionalmente. A maranhense de origem quilombola, criada no Distrito Federal, acaba de vencer o Prêmio Orí - Beatriz Nascimento, concedido pela Associação Nacional de História (Anpuh), pelo projeto Tranças no Mapa, que integra a pesquisa do Programa de Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais da UnB. Antes, o estudo havia vencido a 37ª edição do prêmio Rodrigo de Melo Franco Andrade, do Iphan, pelas “ações de excelência” no campo do patrimônio cultural brasileiro.
Orientada pela historiadora Cristiane Portela, Layla mapeou trancistas negras no Distrito Federal e Entorno, com o objetivo de reconhecer e valorizar a cultura das tranças afro-brasileiras como patrimônio cultural imaterial. Foi além: ajudou as participantes da pesquisa a reconhecer a potência da história e dos corpos negros. “Elas foram se apropriando das próprias narrativas e entendendo (...) que não era à toa que a maioria ali foi trançada pela avó, pela mãe (...) foram entendendo que isso estava ligado aos modos de vida”, conta Layla. A pesquisadora recebeu o prêmio, na última quinta-feira, em Belo Horizonte e falou à coluna sobre a experiência.
O que faz desse projeto uma iniciativa premiada?
O Tranças no Mapa é um projeto de formação e de pesquisa relacionado a identificar e documentar a prática de trançar enquanto saber, enquanto ofício tradicional, apontando caminhos para a patrimonialização desse ofício numa perspectiva nacional. Vencemos o prêmio da Anpuh na categoria relacionada a projetos sociais que desenvolveram diferentes ações, que foram, por exemplo, o banco de dados das trancistas, o mapeamento digital delas, as oficinas de mapa afetivo e a organização dos arquivos familiares negros.
O que descobriu?
Eu também sou trancista. Então, nesse sentido, não tive tanta dificuldade de acesso ao público-alvo do projeto. Fiz um mapeamento colaborativo digital e consegui mapear 95 trancistas do Distrito Federal e do Entorno. Dentro disso, a gente conseguiu traçar um perfil sociocultural delas, compreendendo que a maioria está em regiões mais vulneráveis, nas periferias da cidade. São mulheres que, normalmente, têm o ofício como renda única. E isso vai trazer uma perspectiva de que é um ofício que permeia duas questões: a cultura e a renda. Também percebemos que é um ofício tradicional, porque está relacionado aos processos de geração familiar na comunidade negra. E aí é um um um perfil importante, que reforça a perspectiva de que é um patrimônio, é um saber tradicional que faz parte dos modos de vida das mulheres negras.
As trancistas também mergulharam nesse resgate?
Selecionamos nove trancistas que participaram da oficina de mapa afetivo, dentro do que chamamos de mapa familiar. Aí, a gente identificou que a maioria foi trançada pela mãe, pela avó, por uma tia, por alguma outra pessoa de dentro da comunidade. Que eram trançadas normalmente na infância para ir para a escola, que acabaram se tornando trancistas na juventude. A pesquisa também mostra que elas acabam indo atuar nos salões afro, mas a maioria atua primeiro nos domicílios. E, quando têm o salão afro, ele acaba sendo uma extensão da varanda de casa. Ou seja, não é necessariamente só um espaço comercial. O salão afro também é um espaço de aquilombamento, também é um espaço que precisa ser pensado de forma diferenciada quando a gente pensa na questão de pertencimento racial, de resistência das nossas identidades.
E como foram se dando conta desses processos?
O projeto, que também tem um aspecto formativo, ajudou nesse sentido. Por exemplo, no início, a maioria delas reforçava muito uma narrativa de que tinha aprendido a trançar sozinha. No processo do mapa afetivo, foram se apropriando das próprias narrativas e entendendo que essa história que parecia só individual era uma história coletiva. Que não era à toa que a maioria ali foi trançada pela avó, pela mãe. E que também não era à toa que elas acabaram se transformando em trancistas, entendendo que isso estava ligado aos modos de vida. Se a gente começa a contar essa história só a partir dessa perspectiva da renda, a gente perde a perspectiva da ancestralidade. Não se pode contar a história da trança sem contar a história da trancista. Infelizmente, a gente acaba contando as histórias negras esvaziando os códigos identitários. Fala da história da capoeira, sem a história do capoeirista, a história do acarajé sem a da baiana. São os sujeitos que dão sentido aos códigos identitários, aos códigos culturais
A websérie que será lançada vem com essa perspectiva?
Exatamente. É a gravação do que a gente discutiu nos mapas afetivos, dividida em quatro episódios, que serão lançados no próximo dia 27, no You Tube: pensar no mapa familiar, no mapa cotidiano, no político e no patrimonial. O mapa familiar é a identificação disso dentro das famílias. O cotidiano é quando a gente entende que o que foi aprendido em casa se tornou um ofício, além de pensar as mudanças históricas que o ofício vem sofrendo. Na parte do mapa político, discute-se a questão de raça, gênero e território. Elas começam a entender que não é à toa que é um ofício que está marginalizado, porque é exercido majoritariamente por mulheres negras em territórios negros. Por fim, o mapa patrimonial é quando a gente estende esse diálogo com o Estado, para reconhecer que existe um grupo social com uma demanda própria. E aí é quando a gente consegue, inclusive, popularizar esse ofício enquanto o saber tradicional.
Há uma abertura para esse reconhecimento oficial?
Existe uma abertura, mas sabemos que é complexo, até porque existe uma lista de outros saberes à espera desse reconhecimento também. Uma das coisas que fizemos, por exemplo, foi a criação de uma associação nacional, porque essa demanda precisa precisa vir de um de um grupo organizado. A ideia é que grande parte do conteúdo da dissertação vá para o documento que será avaliado pelo Iphan.
Como se sente com essa premiação?
Estou muito feliz, especialmente por ser algo que está ligado a Beatriz Nascimento, que é uma das minhas referências na pesquisa. Também porque é um projeto que está no âmbito acadêmico, mas que consegue alcançar a perspectiva social. Não é um discurso que fica só dentro da academia, existe uma demanda social que o projeto conseguiu alcançar. E não é a primeira premiação. Também ganhamos o 37º Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, que é a maior premiação do Iphan. Foram outros 17 projetos, e somos o único do DF. Então, assim, a gente conseguiu juntar duas premiações importantes: a do Iphan, que reforça essa questão do patrimônio, e agora vem esse da Beatriz Nascimento, que reforça, inclusive, a importância da gente enquanto comunidade negra, enquanto mulheres negras trazendo os nossos saberes como uma pauta importante na perspectiva política. A gente sai do lugar de pesquisado para se tornar pesquisador.
A LIGA DA ESCRITA
Pretas que escrevem
A quinta edição do encontro literário Julho das Pretas que Escrevem está próxima e com um grupo de homenageadas de peso: as escritoras Ana Rossi, Andressa Marques e Ramila Moura, a jornalista Juliana Cézar Nunes e a mestra e compositora Martinha do Coco. As talentosas estarão reunidas no próximo sábado, no Museu Nacional, a partir das 14h, para uma programação que prevê sarau, rodas de conversa, exposição e venda de livros. O espaço de conexão, afeto e potência, avisa Waleska Barbosa (foto), idealizadora da iniciativa.
Com conexões
Waleska acaba de lançar o livro Ipês não são domesticáveis. Nascida na Paraíba, a também jornalista vive em Brasília há 25 anos e, na segunda obra da carreira literária, faz uma homenagem à capital. “Um presente que me honra, emociona e reforça o afeto que permeia uma obra que começou como um projeto independente e chega ao mercado pela força do coletivo, do aquilombamento e da chegada da AVÁ Editora para me incentivar a seguir”, disse ao Correio. Facilitar as conexões, aliás, é uma das propostas do evento do próximo sábado.
Minha eleição representa a entrada de muitas outras pessoas que, como eu, não se viam nesse lugar. É um gesto simbólico, mas também transformador.”
Ana Maria Gonçalves Primeira mulher negra eleita a integrar a Academia Brasileira de Letras (ABL). A imortal foi eleita no último dia 10.
Matronas no Jabuti
A antropóloga Paula Balduíno de Melo (foto) é uma das semifinalistas da segunda edição do Prêmio Jabuti Acadêmico com o livro Matronas Afro-pacíficas: tramas da resistência na fronteira Colômbia-Equador, publicado pela Editora UnB. A obra é resultado das viagens e pesquisas realizadas pela brasiliense no Equador e na Colômbia, entre 2012 e 2014, onde conviveu com parteiras, curandeiras, rezadeiras, peças-chave na resistência de comunidades afro-latinas. “Escrever esse livro envolveu me relacionar com as pessoas, sua comida, música, cultura, morei alguns meses no território, em meio a conflitos, foi muito intenso”, conta Paula, que também é professora no Instituto Federal de Brasília e diretora no Ministério da Igualdade Racial. A lista de finalistas será anunciada no próximo domingo, e a cerimônia de entrega do prêmio está prevista para 5 de agosto.