Cotas

Estudante autodeclarada parda tem matrícula indeferida por UFPI

Família procurou a Defensoria Pública para recorrer da decisão da Universidade Federal do Piauí. Instituição diz que vai se pronunciar em nota nesta semana

Sofia Thomas*
postado em 06/03/2024 17:50 / atualizado em 07/03/2024 15:51
" Sempre me autodeclarei parda, está escrito nos meus documentos" - (crédito: Arquivo Pessoal)
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Rayslene Tavares dos Santos, 18 anos, mora na cidade de Teresina, no Piauí, e seria a primeira de sua família a entrar em uma universidade pública. Concorrendo a uma vaga em letras inglês pelo sistema de cotas da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Raylsne obteve uma pontuação de 960 na redação do Enem, mas não foi aprovada no curso. Isso porque teve sua matrícula indeferida pela banca de heteroidentificação da universidade, que não a considerou negra para os fins da seleção.

"Sempre me autodeclarei parda, está escrito nos meus documentos. Minha mãe possui traços negros, meus avós são negros, além de possuírem também ascedência indígena", afirma a estudante. “Dois avaliadores indeferiram minha candidatura e apenas um aceitou. Entrei com um processo, reenviei tudo, coloquei as justificativas e novamente negaram", relata.

Rayslene resume os sentimentos diante da negativa: decepção e frustração. “Me senti bastante oprimida, chorei tanto que achei que as lágrimas nunca iam acabar. Foi uma injustiça sem tamanho”, lamenta. A jovem afirma que essa é a segunda vez que a situação acontece na família: "Meu irmão também teve nota para passar dentro das cotas, no ano passado,  também na UFPI, só que a inscrição dele também foi indeferida. Disseram que ele não possuía as características de alguém pardo e ele possui um tom de pele mais escuro que o meu."

Filha de um ex-motorista de ônibus e de uma servidora pública, Rayslene sempre estudou em escola pública. “Desde o 9º ano eu já tinha esse foco de passar em uma federal. Assim que eu entrei no ensino médio, eu já comecei a estudar. Mas meu 1º ano não foi fácil, porque foi durante a pandemia. A gente que é de escola pública não aprendeu muita coisa”. lembra. Apesar dos obstáculos, a garota se esforçou nos estudos para o Enem: utilizou o YouTube e contou com a ajuda de seus professores da escola para tirar dúvidas.

Atualmente, com o pai trabalhando como motorista de aplicativo e o emprego da mãe, a família de três filhos não possui condições para a contratação de um advogado. Por isso, Rayslene e os pais decidiram abrir um processo na Defensoria Pública com o intuito de conseguir a efetivação de sua inscrição no processo seletivo.

Nesta quarta-feira, 6, a família obteve uma resposta da Defensoria afirmando que a UFPI reavaliará o resultado do processo de heteroidentificação e, dentro de cinco dias, se manifestará oficialmente, mais uma vez.

Procurada, a universidade declarou que irá se posicionar publicamente sobre a situação através de uma nota oficial, que deve ser publicada nesta sexta-feira, 8/3.

Colorismo

O processo de heteroidentificação da UFPI exige que o candidato envie uma foto de frente para a câmera e outra de perfil. Além das fotos, é necessário o envio de um vídeo, em que o estudante precisa se autodenominar preto ou pardo.

Toda a avaliação é baseada apenas em aspectos fenotípicos visíveis — conjunto de características físicas do indivíduo, como cor da pele, textura do cabelo e aspectos faciais, conforme previsto no edital. A banca não leva em consideração a ascendência do candidato ou comprovações genéticas de raça e etnia.

Pardo é um termo utilizado pelo IBGE para classificar um dos seis níveis de cor ou raça da população brasileira. Pessoas pardas são aquelas que possuem várias ascendências étnicas, como a mistura de raça entre brancos e pretos, brancos e índios ou índios e negros. De acordo o censo do IBGE, a maior parte da população brasileira se considera preta ou parda, cores classificadas pelo instituto dentro da designação de raça negra.

Alessandra Devulsky, acadêmica especialista em colorismo, defende a forma de avaliação realizada pela universidade e ressalta a importância de realizá-la. "Hoje, existe uma preocupação legítima de se proteger a política de cotas de fraudes, por isso que a existência das bancas ainda é necessária. Em todo o processo no qual nós temos um benefício que é concedido pelo Estado, existe a possibilidade de que pessoas tentem fraudar esse sistema", diz.

Alessandra também explica o que pode ocasionar possíveis erros de avaliação de bancas universitárias. " Acredito que o que ocasione esse tipo de situação, seja erros ou dificuldade de leitura fenotípica dessas pessoas, existe um receio muito grande de se conceder o benefício a alguém que não seria lido como negro, ou seja, seja ele preto, seja ele pardo, o que eu acho que pode efetivamente também contribuir nessa dificuldade existente nas identificações." complementa.

*Estagiária sob a supervisão de Priscila Crispi

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