NOSSOS MESTRES

Professor transforma sala de aula em cinema e inspira alunos com gravações

Na coluna Nossos mestres, a história do professor do CEF 1 do Cruzeiro, que apresenta aos alunos as possibilidades de um instrumento que eles já têm em mãos: o celular

Mariana Niederauer
postado em 29/05/2022 00:01
 25/05/2022. Crédito: Ed Alves/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF. Trabalho e Formação Profissional. Professor da rede Publica de Ensino Zaldo Borges,  da Aulas para Alunos que unem Cinema entre outras disciplina. Ja ganhou diversos premios com Filmes produzidos por seu Alunos.                                                                                                                     -  (crédito:  Ed Alves/CB)
25/05/2022. Crédito: Ed Alves/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF. Trabalho e Formação Profissional. Professor da rede Publica de Ensino Zaldo Borges, da Aulas para Alunos que unem Cinema entre outras disciplina. Ja ganhou diversos premios com Filmes produzidos por seu Alunos. - (crédito: Ed Alves/CB)

Algo em Brasília atraiu os olhares do professor Zaldo Borges, 57 anos. Acostumado a mudanças constantes — de endereço e de projetos —, há 38 anos ele fincou raízes na capital, onde começou a carreira como docente da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Nascido numa aldeia indígena na Paraíba, no município de Baía da Traição, ele viveu boa parte da infância em diferentes territórios.

O pai de Zaldo, Cícero Cavalcanti, era sertanista e um dos pupilos do marechal Rondon. A ascendência indígena veio da bisavó, que levou o patriarca a mergulhar na cultura dos povos originários e a preparar um dicionário com alguns dos principais termos traduzidos para o português. Ao ser apresentado à obra, o marechal se encantou e ofereceu a Cícero um cargo no antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), atual Funai.

A mãe, Maria Lourdes Borges de Albuquerque, hoje com 85 anos, dava aulas para indígenas numa aldeia em Águas Belas (PE) quando encontrou Cícero. Foi amor à primeira vista. Ela desfez um noivado de quase três anos e em poucos meses estava casada. Cícero morreu aos 92 anos, em 2013, e até hoje Maria Lourdes guarda bilhetes que o marido trocava com o marechal Rondon.

A primogênita nasceu em uma aldeia em Rondônia. Depois, vieram mais cinco. Erizaldo Cavalcanti Borges Pimentel é um dos filhos "do meio". Para todo o lado que o pai seguia, a prole ia junto, em missões pelo Norte e Nordeste. "Quando criança, eu estive no Pará, no Maranhão… Já menino pequeno, em Rondônia, me lembro de ter cruzado a fronteira para a Bolívia num rio, a bordo de uma voadeira. A família toda viajava naqueles barquinhos perigosíssimos", lembra. O período mais longo de calmaria, segundo ele, veio durante o ensino fundamental, todo cursado em Recife.

A vocação para ensinar, o filho Zaldo demonstrou desde cedo. Aos 13 anos, ele foi chamado para ministrar sua primeira aula particular, ainda em Recife, cidade onde passou a maior parte da infância. Aos 15, quando os pais se mudaram para Brasília, mais uma vez em razão de trabalho, preferiu permanecer no Nordeste. Havia conseguido uma vaga na Escola Técnica Federal de Pernambuco (hoje Instituto Federal) e sabia que, dificilmente, encontraria ensino com qualidade semelhante. Não quis perder a oportunidade.

Quando concluiu o ciclo básico da educação, aos 18 anos, se mudou para Brasília e passou também a dar aulas particulares, mas nutria, até então, a vontade de cursar engenharia mecânica. "Passei a ter, a cada hora, um aluno, dando aulas particulares de matemática e de física."

Tudo isso porque, durante o cursinho pré-vestibular, percebeu que o professor se atrapalhava um pouco e aquilo refletia nas dificuldades dos alunos em entenderem o conteúdo. "Pedi, então, ao dono do cursinho, para dar aula de reforço aos colegas. Ele deixou e, numa aula que eu dei, teve um colega, eu não me recordo quem foi, mas eu agradeço a ele todo dia, que chegou para mim e falou: 'Cara, você vai fazer engenharia? Você tinha que ser professor de física!'"

Zaldo ouviu o conselho, passou na Universidade Católica de Brasília, aos 19 anos, e correu para providenciar a carteira de trabalho. O primeiro carimbo foi como professor de física. Dom Bosco, La Salle, Planalto e Sigma estão entre as instituições de ensino particulares onde ele lecionou, por vezes, conciliando a cátedra com a carreira na rede pública.

  • Zaldo com a filha Camila e a esposa Cristiana. Alunos gravando um vídeo; Projeto cine com ciência, do professor Zaldo Borges, no CEF 1 do Cruzeiro. Coluna Nossos mestres Arquivo pessoal
  • Alunos no Cine Brasília com trabalho premiado. Alunos gravando um vídeo; Projeto cine com ciência, do professor Zaldo Borges, no CEF 1 do Cruzeiro. Coluna Nossos mestres Arquivo pessoal
  • Alunos gravando um vídeo; Projeto cine com ciência, do professor Zaldo Borges, no CEF 1 do Cruzeiro. Coluna Nossos mestres Arquivo pessoal
  • 25/05/2022. Crédito: Ed Alves/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF. Trabalho e Formação Profissional. Professor da rede Publica de Ensino Zaldo Borges, da Aulas para Alunos que unem Cinema entre outras disciplina. Ja ganhou diversos premios com Filmes produzidos por seu Alunos. Ed Alves/CB
  • 25/05/2022. Crédito: Ed Alves/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF. Trabalho e Formação Profissional. Professor da rede Publica de Ensino Zaldo Borges, da Aulas para Alunos que unem Cinema entre outras disciplina. Ja ganhou diversos premios com Filmes produzidos por seu Alunos. Ed Alves/CB
  • 25/05/2022. Crédito: Ed Alves/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF. Trabalho e Formação Profissional. Professor da rede Publica de Ensino Zaldo Borges, da Aulas para Alunos que unem Cinema entre outras disciplina. Ja ganhou diversos premios com Filmes produzidos por seu Alunos. Ed Alves/CB
  • Zaldo exibe os troféus conquistados por seus alunos em festivais de cinema: "Eles se tornam os mestres quando o assunto é app de edição de vídeo no celular" Ed Alves/CB
  • O professor Zaldo Borges, com alunos do Centro de Ensino Fundamental 1 (CEF1) do Cruzeiro: "Quando entrei nessa escola, os celulares eram recolhidos. Mostramos que era importante que o aparelho estivesse nas mãos dos meninos" Ed Alves/CB

Luz, câmera… educação!

O projeto que Zaldo coordena atualmente, no Centro de Ensino Fundamental 1 (CEF1) do Cruzeiro, é sucesso de público e crítica, fazendo uma analogia direta com o tema das aulas: cinema. "Venho para cá conversar sobre um assunto que é superinteressante. Vi tevê pela primeira vez quando tinha 8 anos. E o cinema nunca fez parte da minha vida, porque era uma coisa cara, precisava juntar meu dinheirinho para poder ir", conta.

O cenário atual é bem diferente, e já passou por transições importantes no momento em que mudou o foco da carreira docente, passando a lecionar conteúdos mais lúdicos. "Quando entrei nessa escola, os celulares eram recolhidos. Fizemos, então, um movimento contrário e, no ano seguinte, mostramos que era importante que o celular estivesse nas mãos dos meninos e a gente disciplinasse o uso do aparelho. Deu supercerto", relata Zaldo.

"Não vejo o audiovisual como a única solução para trazer a qualidade da educação que a gente quer, mas não tenha dúvida de que, nesse bolo que a gente pode chamar de educação de qualidade, ele é um dos ingredientes", atesta.

Entre alunos que já nasceram iluminados pelas telas de celulares, computadores e tablets, conforme reforça o professor, a sala de aula do projeto Cine com ciência é um espaço de troca. Os alunos, por exemplo, se tornam os mestres quando o assunto é app de edição de vídeo no celular. "Você tem que respeitar essa garotada", diz Zaldo.

Com as palavras de Paulo Freire em mente e estampadas na camiseta, ele exalta a educação dialógica e libertadora. Quando a aula acaba, a sensação é de que o tempo passou voando, só para deixar o professor cheio de orgulho. "Fico me sentindo no céu, pois é a forma de os meninos mostrarem que curtiram e que estavam querendo ver mais", diz.

Muitas vezes, as discussões ficam mais profundas e acabam gerando dúvidas sobre a carreira a seguir. Nessas horas, Zaldo dá o exemplo de vida dele e sugere que não se estressem tão cedo, mas deixa o conselho: "Reach for the stars, but keep your feet on the ground" — Busque as estrelas, mas mantenha os pés no chão. Ou seja: "não deixem de estudar, porque, se não deu certo aquele plano, a educação sempre é uma forma de você chegar a grandes distâncias".

Da academia para a sala de aula

Foi durante a pesquisa de mestrado, na Universidade de Brasília (UnB), que Zaldo despertou para a importância de trabalhar o lado lúdico na educação, num esforço até filosófico para atrair o interesse dos alunos. "Por que o arco-íris aparece? E por que nunca aparece de noite? Por que ele está sempre curvo? Não houve um dia em que ele veio quadrado? Por que ele nunca aparece rosa-choque, mas sempre com aquelas sete cores?", indagava. A dissertação era sobre a física dos brinquedos.

Nesse processo de produção acadêmica e de presença em sala de aula, surgiram os celulares e, em seguida, os smartphones. "Eu vi os meninos utilizando os primeiros smartphones naquela perspectiva de filmar, e aí veio a questão do pesquisador", destaca. "Fiz uma proposta de pesquisa, dessa vez para a Faculdade de Educação da UnB, onde me ofereci para fazer o doutorado na área de cinema e educação."

"A ideia era explorar os celulares como ferramenta pedagógica, para, em vez de brigar com o menino por ele estar com celular, colocar o aparelho na mão dele, dirigindo, para que ele consiga, a partir dali, contar suas histórias, debater", lembra Zaldo. "Foi uma avenida enorme que se abriu na minha vida."

Depois de uma passagem como diretor no Sindicato dos Professores do DF (Sinpro-DF) e como administrador no Cruzeiro, durante a gestão de Agnelo Queiroz (PT), ele voltou para a sala de aula com um novo desafio: ensinar cinema aos alunos do ensino fundamental.

A base, já havia construído no doutorado, com a tese Cine com ciência - Luz, câmera… educação!, defendida em 2013. Em 2015, estreou como professor de cinema, na chamada "parte diversificada" do currículo, hoje, parte interdisciplinar, que tem como objetivo integrar os conhecimentos adquiridos nas demais disciplinas. "Eu falo para os meninos que, aprendendo a produzir um bom vídeo, eles têm condição de fazer os trabalhos de história, de geografia, de matemática e de português de uma forma mais criativa", resume.

O primeiro reconhecimento foi para os alunos, que, em 2016, ficaram em primeiro lugar no DF em premiação concedida pelo Ministério da Educação, sobre o combate ao zika vírus. Entre 1.160 vídeos enviados de todo o Brasil o Zim, Zim, Zum... foi o melhor do DF no ensino fundamental. Mais tarde, em 2017, Zaldo inscreveu o projeto no 10º Prêmio Professores do Brasil e foi vencedor na competição. Hoje, um de seus focos de dedicação é a disseminação da metodologia que o levou ao reconhecimento nacional. A obra Cine com ciência - Produção de vídeo com os alunos do ensino fundamental, sintetiza a experiência em versão digital e interativa. Neste ano, o professor lançou seu primeiro livro didático sobre cinema.

"Poucas são as instituições que formam professores que têm no audiovisual algo relevante, mas deveria haver, pois isso é o que se conecta com os alunos hoje", observa o professor. Na visão dele, o que existe de mais sofisticado em termos de comunicação humana, atualmente, é um vídeo, já que está acessível a qualquer pessoa que tenha um celular.

"Então, é preciso explorar, saber utilizar isso com consciência — daí o trocadilho que a gente faz com o nome do projeto: Vocês têm um instrumento muito poderoso que, se souberem utilizar, vão conseguir passar mensagens muito interessantes e transformar esse mundo, porque, no fundo, é o que vocês querem", reflete Zaldo.

A produção, nesses oito anos de projeto, alcançou a marca dos 150 vídeos, todos postados no YouTube. Temas delicados como anorexia nervosa e bullying são tratados pelos estudantes, que levam as próprias experiências e as colocam sob reflexão na produção audiovisual.

Escrevendo uma nova história

"Minha esposa é de Alagoas e, há 28 anos, quando nos encontramos, ela falou: 'Eu largo meu emprego público para te acompanhar em Brasília, mas quando você estiver aposentado, a gente volta para o Nordeste'", conta o professor. E, para Zaldo, promessa feita é promessa cumprida. No próximo ano, chega a aposentadoria e, além de tocar o sonho de ser cineasta, se mudará com a mulher, a servidora pública aposentada Cristiana, para a terra natal dela. "Minha mãe já trocou Recife por Paripueira, que é a primeira cidade ao Norte de Maceió, coladinho na capital. E é por ali que eu vou ficar, provavelmente", relata.

Agora, Zaldo, que é pai de Camila, 31, e avô da pequena Ioná Rosa, 3, se prepara para escrever os próximos capítulos da própria narrativa. Em 2023, ele se dedicará ao seu primeiro longa-metragem. O roteiro está pronto, assim como toda a proposta de elenco e de locações. Falta agora os últimos ajustes antes de começar as gravações para, em 2024, lançá-lo nas salas de cinema.

Antes disso, porém, Zaldo pretende encerrar a participação na escola com chave de ouro, ou melhor, estendendo o tapete vermelho. O tradicional festival do CEF 1 do Cruzeiro deverá se expandir para todas as escolas, públicas e particulares, para todos os jovens que quiserem se expressar por meio de vídeo e mostrar o próprio trabalho. "Aquela sensação toda que é participar de um festival, viu?", garante, animado.

 


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