O Dia do Frevo, celebrado antes de ontem (9/2), reverencia o ritmo que, com suas coreografias vibrantes e melodia contagiante, é um legado cultural precioso de Pernambuco e reflete a alegria e a diversidade do carnaval do Brasil. O reconhecimento do ritmo como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 2012, destacou sua importância global.
Mas se engana quem pensa que só se dança e vive o ritmo durante os dias de momo. Os profissionais do frevo se dedicam o ano inteiro e encaram a atividade como profissão. Além da formação, do preparo físico e da nutrição, os passistas investem muitos recursos em figurino para fazer do carnaval de Recife e Olinda uma das maiores festas do mundo.
Formação
Em Pernambuco, a formação dos passistas de frevo ocorre em companhias de dança, em aulas ministradas por mestres, ou em instituições educativas. A Escola Municipal de Frevo Maestro Fernando Borges é uma das principais opções para quem deseja se profissionalizar no ritmo. Júnior Viégas, professor da instituição, conta que, geralmente, os alunos entram na escola sem saber nenhum passo e saem direto para os palcos e para a folia. “São três níveis de formação: iniciante, intermediário e avançado. A gente trabalha três tópicos nas aulas: historicidade, musicalidade e corporeidade. Após esse processo de formação, alguns alunos são convidados a participar de uma seleção para compor o núcleo de pesquisa e formação na escola.”
Além da formação técnica, os passistas precisam manter o preparo físico. A bailarina Bruna Renata, 30 anos, é também professora de educação física e explica que a rotina desses profissionais pode ser comparada a de um atleta. “É muito importante o treinamento físico para manter o condicionamento, tanto cardíaco quanto muscular. O nosso ensaio dura em torno de duas horas. Normalmente, os 30 minutos iniciais são de treinos para preparar esse corpo para a apresentação. Como nós estamos em constante uso do corpo, pode ocorrer lesões, como com um atleta. A preparação serve para para diminuir as lesões e impactos musculares e retardar o máximo possível os desgastes físicos”, ressalta.
O ator e bailarino Maycon Douglas, 19 anos, confirma a orientação da professora: “Eu costumo falar que, durante o carnaval, nosso pique é quatro vezes maior do que durante o resto do ano. Por isso, é preciso fortalecer bem os músculos para estar preparado. Eu sempre vou treinar pela manhã, me ajuda muito. Melhora a resistência e o fortalecimento”
Maycon ressalta a importância da alimentação, da hidratação e do descanso para os atletas do carnaval. “O descanso é muito importante, e o sono, também. Tenho me preocupado com a alimentação. Estou comendo mais folhas, legumes e frutas, e bebo bastante água para não desidratar, tudo para manter a imunidade alta e não adoecer nos dias do carnaval”, conta.
Deixar de dançar é o maior medo dos passistas de frevo. “O frevo é a minha vida e é do que eu vivo”, conta a atriz e bailarina Fia Cachinhos, que sentiu na pele o desespero de ficar impossibilitada de subir aos palcos. “Em 2019, eu tive um deslocamento de patela, fiquei internada por 18 dias e quase um ano afastada, fazendo fisioterapias. Me senti muito mal neste período, só de imaginar que eu não fosse voltar. Eu fiquei muito triste e mexeu muito com o meu psicológico. Eu sobrevivo da dança”, lembra.
Fia precisou passar por uma série de sessões de fisioterapia e hoje, recuperada, busca treinar ativamente para fortalecer o corpo. “Eu mudei alguns hábitos e malho de forma constante. A dança compromete muito o nosso corpo, e o frevo, então, mexe com tudo! Se quisermos trabalhar com isso, precisamos encarar com seriedade. Ninguém enxerga o que a gente passa. A luta que enfrentamos todos os dias para subir ao palco. Tem que ter muito amor envolvido”, afirma.
Instrumentos de trabalho
Para encarar os palcos e as apresentações, os passistas investem cerca de R$ 1 mil em sombrinhas específicas de frevo, figurinos e calçados. O bailarino Eliseu Nascimento conta que o material precisa ser resistente para aguentar o pique das apresentações. “A gente investe um valor alto para garantir segurança e conforto. Tudo precisa ser muito forte para segurar os passos e a rotina pesada. Tem dias que a gente dança mais de cinco vezes, então tem que ter uma durabilidade boa”, diz.
O estilista Elvis Ferreira, 39, tem uma larga experiência com figurinos de passistas e conta que as indumentárias, além de resistentes, precisam expressar a alegria do carnaval de Pernambuco. É no atelier equipado na Rua 2 de Fevereiro, no Morro da Conceição, que o profissional cria centenas de roupas carnavalescas. “O figurino precisa ser alegre e transmitir fervor. Antes do passista dançar, ele tem que falar por si. Além do brilho, precisamos pensar em um tecido duradouro e maleável. Os que a gente produz aqui duram mais de 10 anos. Atualmente, utilizamos muito o veludo com elastano, que permite flexibilidade e força”, explica.
As peças são produzidas artesanalmente e levam aproximadamente 20 dias para ficarem prontas. Elas custam entre R$ 300 e R$ 500. “Depende muito do bordado, do material e das aplicações. Usamos centenas de pedrarias. É uma produção cara, que envolve muitas pessoas”, diz o artesão.
O calçado mais popular do bailarino de frevo é o tênis Rainha, utilizado também em diversos esportes como vôlei, capoeira e futsal. Recentemente, a marca lançou uma linha especial de frevo. O produto conta com arte assinada pelo artista plástico brasileiro Sancler Graffit. “O Rainha Frevo captura o ritmo frenético, dessincronizado, lento e rápido da vida brasileira, assim como o frevo. O modelo é uma homenagem à marca genuinamente brasileira, que foi escolhida para fazer parte da cultura do frevo”, conta o artista plástico.
A sombrinha de frevo do passista é diferente das “made in china”, produtos importados que o grande público encontra em feiras Economia criativa e comércios durante o carnaval. Elas são mais resistentes, pesam aproximadamente 1 kg e custam entre R$ 120 e R$ 330. São produzidas artesanalmente e pensadas para atender às necessidades dos profissionais. Quanto mais resistente, mais cara. “A sombrinha do passista precisa ter uma boa resistência, maleabilidade e uma ergonomia voltada para os movimentos da dança, tanto do ponto de vista de manuseio quanto de acompanhar as firulas que o passista faz no momento de suas performances”, explica o engenheiro e mestre de frevo Wilson Aguiar, do Brincantes das Ladeiras.
o Brincantes das Ladeiras. Wilson é um dos principais nomes quando o assunto é produção de sombrinhas. Em 2015, o artista criou um modelo específico para o profissional do passo. “Já era um projeto que eu tinha guardado e assim que o frevo foi reconhecido como patrimônio cultural, fiz o primeiro protótipo como homenagem ao ritmo e aos tantos passistas que defendem a tradição. A sombrinha tem vida útil de 20 anos, conta com tecnologia biomecânica e aeroespacial. É feita com aço cirúrgico, plásticos de engenharia e cabo antiderrapante. Conta também com amortecedor pneumático”, detalha
Remuneração
Existem diversos formatos de contratação dos passistas de frevo. Eles podem se apresentar sozinhos, em duplas ou em grupo. Essas apresentações ocorrem geralmente em palcos, praças e ruas. Os valores variam também se a apresentação será com orquestra ou som mecânico.
Os cachês do passista tendem a variar entre R$ 100 e R$ 500, por aproximadamente 1 hora de apresentação. As contratações costumam ser realizadas como prestação de serviço de Microempreendedor Individual (MEI). Contudo, os profissionais relatam que muitos contratantes resistem pagar pelo serviço porque não compreendem o investimento do profissional da dança
Eliseu Nascimento revela que, às vezes, prefere não topar o trabalho a se submeter a cachês precários. “Muitos não querem pagar o valor que a gente cobra. Eles não enxergam o nosso preparo e a nossa bagagem de experiência. Mesmo comprovando a trajetória, mostrando vídeos, fotos, portfólio cultural e as competências, ainda querem pagar pouco”, comenta.
Fia Cachinhos conta que já passou pela mesma situação: “Quando a gente estipula o valor do serviço, eles falam que não tinham essa proposta em mente. Isso entristece muito. Quando eu dou o meu valor, equivale ao meu trabalho e à minha dedicação. É uma desvalorização da nossa arte”.
A professora Bruna Renata completa: “Tem muita gente que acha caro, mas temos que valorizar o nosso trabalho. Da minha parte, eu faço isso: se a pessoa falar que não concorda ou que está muito caro para o orçamento, eu não assumo. A gente investe em educação, corpo, academia, resistência, figurino e tempo para poder ter esse retorno financeiro. É o reconhecimento do nosso trabalho.”
Alternativas
Em busca de alternativas para financiamento de projetos maiores, muitos passistas buscam se especializar em produção cultural para subsidiar espetáculos e formações através de editais. O professor Júnior Viégas, por exemplo, teve o projeto Frevo On -Line aprovado em dois editais, o da Lei Aldir Blanc e o da Lei Paulo Gustavo. O projeto tem como objetivo difundir e valorizar cada vez mais o frevo através de aulas em plataformas digitais.
“Eu dou aula o ano inteiro como carteira assinada, porém, enquanto bailarino, preciso participar de editais de incentivo à cultura. Dessa maneira, a gente ganha financiamento para projetos culturais. Não é fácil, a disputa é grande e nem todos os grupos conseguem”, conta Júnior
Para viver de arte, os bailarinos também participam de concursos. O mais prestigiado é o promovido pela Prefeitura de Recife. Na disputa, os candidatos são avaliados em harmonia e diversidade de movimentos. Neste ano, o concurso ocorreu no Pátio de São Pedro, no centro de Recife, nos dias 25 e 26 de janeiro.
O bailarino Eliseu Nascimento levou a melhor e se consagrou bicampeão da categoria adulto. “Eu fiquei muito feliz em ter ganhado. Não é só um concurso, é uma forma de mostrar o nosso trabalho e o nosso esforço durante o ano. Na questão financeira, também ajuda muito. É muito gratificante. Agradeço muito a Deus e à cultura por me proporcionar tantas alegrias”, comemora.