Qualificação

Projeto de extensão da UnB promove qualidade de vida entre profissionais de reciclagem

O projeto, financiado pela União Europeia, é executado pela Faculdade de Tecnologia (FT)

Priscila Crispi
postado em 18/02/2024 06:00 / atualizado em 18/02/2024 06:00
A estudante Luiza Melo, ao centro, coordenou equipe de alunos que desenvolveu ideia de aplicativo para capacitação profissional de catadores -  (crédito: Arquivo pessoal)
A estudante Luiza Melo, ao centro, coordenou equipe de alunos que desenvolveu ideia de aplicativo para capacitação profissional de catadores - (crédito: Arquivo pessoal)
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O clássico do grupo de rap Racionais MCs diz que “até no lixão nasce flor”. Trabalhadores de cooperativas de reciclagem da cidade, em parceria com estudantes da Universidade de Brasília (UnB), vêm experimentando, na prática, a verdade desse verso. Um projeto de extensão da Faculdade de Tecnologia (FT), que oferece soluções inovadoras de engenharia com foco em sustentabilidade, tem ajudado a florescer melhores condições de vida para quem, um dia, esteve inserido em situações insalubres.

Mirian Mendes, coordenadora de RH da Recicle a Vida, entidade credenciada para realização da coleta seletiva na região de Samambaia e formada por ex-catadores de materiais recicláveis, diz que o projeto tem impactado não só individualmente os trabalhadores, mas também no crescimento da cooperativa, o que se reflete no aumento de suas rendas.

A Recicle a Vida foi escolhida para implementação de um dos produtos do projeto de extensão: um aplicativo de celular que oferece cursos gratuitos de capacitação profissional e que começa a funcionar no próximo mês. Estão disponíveis, em um primeiro momento, cursos sobre educação financeira e segurança do trabalho, desenvolvidos com o apoio de outros departamentos da universidade e do Ministério Público do Trabalho, mas a ideia é expandir os conteúdos.

“O curso de educação financeira foi o mais pedido pelos trabalhadores. Durante o desenvolvimento do app, alguns cooperados fizeram testes para melhoria do produto e, só desse pequeno contato que tiveram, já me disseram que fez muita diferença e que gostariam de ter acesso a essas informações antes”, relata Mirian.

As visitas de campo, no galpão de coleta seletiva da cooperativa Recicle a Vida, servirão para elaboração de novos projetos, baseados nas necessidades dos catadores
As visitas de campo, no galpão de coleta seletiva da cooperativa Recicle a Vida, servirão para elaboração de novos projetos, baseados nas necessidades dos catadores (foto: Arquivo pessoal)

Maria Eneide é presidente da cooperativa e foi uma das quatro pessoas que participaram dos testes. “Foi a primeira vez que usei um aplicativo desses na vida, tive dificuldade no começo, mas fui aprendendo e, no fim, fiquei foi craque!”, brinca.

Neidinha, como é conhecida pelos colegas, estudou até a terceira série do ensino fundamental. Por toda vida, trabalhou com reciclagem e só em 2005 deixou a catação nas ruas para fundar a cooperativa que mudou sua vida. “Não queremos estudar mais para sair daqui, não queremos outro emprego, o que queremos é melhorar a cooperativa. Desde que vim para cá, fui aprendendo, passo a passo. Fiz curso sobre cooperativismo, sobre gestão financeira, e assim, vamos crescendo com a nossa comunidade”, conta.

O aplicativo será apresentado aos 82 catadores que fazem parte da organização durante um treinamento. A cooperativa vai oferecer também uma sala com internet para os trabalhadores realizarem os cursos durante a jornada de trabalho. O objetivo, segundo a coordenadora, é que com mais formação, eles possam ampliar sua oferta de serviços para além da triagem de material, trabalhando, por exemplo, com o atendimento a grandes empresas para destinação de resíduos.

“Ações de formação são um desafio para nós, porque a maioria dos cooperados não continuou os estudos, muitos vieram da catação na rua. Mas os alunos da UnB tiveram muito cuidado em colocar frases curtas, com palavras simples, para que o acesso ao conteúdo fosse prático e fácil. O app atende bem quem tem pouca leitura”, afirma Mirian.

Neidinha completa que, se todo planejamento para tornar os conteúdos acessíveis para um público de baixa escolaridade não for suficiente para fazer os cooperados conseguirem usar a tecnologia, “não vamos deixar eles para trás, a gente ensina eles!”

Projetando mudanças

Professor Paulo César Silva, vice-diretor da Faculdade de Tecnologia da UnB, acompanha visitantes internacionais em aterro sanitário na Samambaia
Professor Paulo César Silva, vice-diretor da Faculdade de Tecnologia da UnB, acompanha visitantes internacionais em aterro sanitário na Samambaia (foto: Arquivo pessoal)

Capitaneado por alunos de engenharia, o projeto de extensão da UnB está há seis anos em funcionamento, desde a desativação do Lixão da Estrutural em 2018. “Com o fechamento do lixão, tínhamos um contingente de aproximadamente 1.200 catadores que precisavam mudar sua forma de se relacionar com o meio ambiente e os resíduos. Desenhamos um projeto para cumprir as metas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, com foco em solucionar as demandas trazidas pelos próprios catadores”, explica o professor Paulo Celso dos Reis Gomes, vice-diretor da FT/UnB.

O projeto usa metodologias ativas de aprendizagem, o que significa que os alunos protagonizam as atividades e aprendem a teoria necessária para a resolução dos problemas a partir de casos reais. Semestralmente, de 40 a 100 alunos de graduação estão diretamente envolvidos com a iniciativa, seja nas visitas de campo ou nas discussões em sala de aula

Atualmente, o aplicativo de capacitação profissional é o mais maduro entre os produtos desenvolvidos, mas os alunos também estão trabalhando com um projeto de logística de armazenamento e uma ferramenta de abertura de sacos de lixo produzida em impressora 3D.

“Colocamos os alunos para conversar com os catadores e entender sua realidade. É um processo educativo de mão dupla: alunos e catadores aprendem. Queremos engenheiros que saibam projetar soluções e não tem nada melhor do que fazer isso em uma situação concreta. Por isso, nossos alunos saem daqui todos empregados e com a carreira facilitada, sabendo trabalhar”, pontua o educador

Luiza Cardoso Queiroz Melo, estudante de engenharia de produção que coordenou a equipe que desenvolveu o aplicativo, confirma a tese do professor. Segundo ela, a oportunidade de aplicar os conhecimentos teóricos da faculdade em projetos que geram valor social trouxe muita realização. “Entregar o produto aos catadores e perceber o potencial de transformação na vida das pessoas é muito gratificante.”

Reconhecimento internacional

Diretoras da cooperativa testam o aplicativo com a ajuda dos estudantes: formação para inclusão
Diretoras da cooperativa testam o aplicativo com a ajuda dos estudantes: formação para inclusão (foto: Arquivo pessoal)

A iniciativa chamou a atenção de parceiros internacionais e, desde 2018, conta com a parceria da Universidade de Aalborg, na Dinamarca. Em 2023, o projeto passou a fazer parte do Erasmus+, programa financiado pela União Europeia para apoio à educação, à formação, à juventude e ao desporto. Com o patrocínio, outras duas instituições se somaram ao projeto: a Universidade do Minho, em Portugal, e a Universidade Saxion, na Holanda.

Os alunos estrangeiros colaboram com os brasilienses na busca de soluções por meio de reuniões on-line que acontecem periodicamente, mas os produtos continuam todos a serem implementados no sistema de coleta de lixo e gestão de resíduos do Distrito Federal.

No fim de janeiro, a equipe internacional se reuniu em Brasília para o evento Waste Summit. Cerca de 70 alunos, professores e orientadores definiram os projetos a serem desenvolvidos no próximo semestre. Entre as atividades, os pesquisadores visitaram as cooperativas de reciclagem e testaram os produtos desenvolvidos, sob a coordenação dos alunos brasileiros.

“Eu acredito que o programa tem muita relevância por unir diferentes áreas de conhecimento na construção de soluções que beneficiam a sociedade e o meio ambiente. E tudo se torna ainda mais engrandecedor no cenário internacional, que permite a troca de experiências com pessoas de culturas diversas”, afirma Luiza.

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