Aos 67 anos, a venezuelana Hilda Guzman refugiou-se no Brasil em 2019

A Venezuela enfrentava graves problemas econômicos e humanitários: hiperinflação, desemprego, aumento da pobreza e fome

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Mayara Souto
29/01/2024 01:08 - Atualizado em 30/01/2024 11:23
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O medo da neta nascer e não ter leite, nem fraldas, para comprar no supermercado fez com que Hilda Guzmán, 67 anos, incentivasse o filho e a nora grávida de 8 meses a saírem da Venezuela, em 2019. Um ano antes, ela deixou o país que foi o seu lar por mais de seis décadas, junto a outro filho, para ir a um refúgio localizado em Boa Vista, Roraima. Ao todo, Hilda tem sete filhos.

“Saímos pela situação do país. A gente tinha dinheiro para comprar, mas não encontrava o que comprar, era muito difícil. Não havia alimento, não tinha água quente, faltava luz todos os dias”, relembra com lágrimas nos olhos, a venezuelana.

Na época em que Hilda deixou a Venezuela, o país enfrentava graves problemas econômicos e humanitários com a hiperinflação, o desemprego, aumento da pobreza e da fome. A Agência da ONU para Refugiados registrou aumento de 8 mil por cento nos pedidos de refúgio de venezuelanos desde 2014, principalmente para países da América Latina e Caribe. Atualmente, mais de 5,4 milhões de venezuelanos vivem no exterior, sendo, assim, um dos maiores deslocamentos do mundo. O Brasil é o 6º país na região a abrigar mais venezuelanos; ao todo, são 96 mil pessoas.

Sentindo uma dor que parece física, ela desabafa: “Foi muito duro”. No entanto, a escolha de vir para o Brasil não carrega arrependimento. Com uma energia impressionante e muita determinação, ela conta alegre sobre a experiência que está tendo.

“Para mim é algo novo, diferente. Porque é uma nova vida que eu, como muitos, estamos tendo aqui no Brasil. É muito gratificante para nós essa nação porque foi a que teve mais amor, mais empenho, mais receptividade. Nós podemos constatar isso pelo o que falamos com outros venezuelanos que estão em outros países”, conta Hilda.

Com quatro filhos e a mãe idosa ainda morando no país, Hilda preocupa-se com a situação da família, mas não pensa em voltar. “Voltar é uma loucura. Minhas filhas dizem para não voltar, tudo fica cada dia mais caro. Há de tudo agora, não como 2015, 2016, 2017 e 2018. Mas, tudo em dólar”, lamenta a venezuelana. Ela conta também que ajuda financeiramente uma das filhas que ficou, pois o salário que ela ganha não é suficiente para comprar itens essenciais.

Trajetória de refúgio e migração de Hilda
Trajetória de refúgio e migração de Hilda (foto: Valdo Virgo/C.B./D.A.Press)

A venezuelana orgulha-se em dizer que a neta é brasileira e nasceu em um refúgio de Roraima. “[Minha nora] foi muito bem atendida, foi ‘ótimo’ como vocês dizem”, afirma. Os serviços de saúde também ficaram precários no país de Hilda, de onde cerca de 22 mil médicos migraram entre 2012 e 2017, segundo a Federação Médica da Venezuela — o que representa 55% dos profissionais registrados pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas).

A necessidade de buscar melhores condições financeiras fez com que a família de Hilda decidisse sair do Norte brasileiro e buscar emprego em São Sebastião, no Distrito Federal.

“Quem sai da sua nação a outro país tem que trabalhar. Porque se você não trabalhar nem em seu país, nem em outro, você vai ficar mal. Aqui tem trabalho. Em São Sebastião tem bastante trabalho de pedreiro e ajudante de pedreiro”, relata Hilda. Ela conta que o filho nunca havia trabalhado como pedreiro, ele era motorista no país deles. “No início foi muito duro para ele, mas está ali trabalhando e, com isso, sobrevivendo com a sua família”, conta, orgulhosa.

Com a bagagem cheia de memórias, Hilda gosta muito de contar sobre os costumes de seu país: as comidas bem temperadas, o feijão sem caldo, os trajes brancos de aniversário das crianças e também as diferentes técnicas de estética e beleza.

“Para o corte de cabelo, aqui fazem, quase sempre, a mesma técnica de corte. Lá é diferente. E para secar, que aqui chamam escova, eu seco, seco, seco, e quando eu chego na ponta tenho que reforçar para ficar muito lisa. Aqui fazem assim: seca, seca, seca e solta. Nas unhas, na Venezuela se usa muito acrílico, resina. Aqui, geralmente, só pintam”, comenta a venezuelana, que era proprietária de um salão de beleza em seu país.

Ela explica que aprendeu o ofício ainda na escola, onde fez cursos de cozinha, cerâmica, costura e cabeleireiro. Além disso, também fez curso técnico de assistente odontológica e trabalhou por alguns anos na profissão.

Desde que chegou ao Brasil, Hilda busca conseguir certificados brasileiros para atuar na área da beleza. “Já fiz cursos de cabeleireira, sobrancelhas, maquiagem profissional, sistema de informática, me falta fazer o de unhas aqui”, comenta.

“A maioria [dos refugiados e migrantes] que está aqui quer fazer empreendedorismo e eu estou me capacitando para isso. Fiz vários cursos para ter meu próprio negócio. Preciso ter o conhecimento para fazê-lo”, afirma Hilda que, durante a conversa com o Correio, estava fazendo o curso de Atendimento e Vendas, do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), que faz parte do projeto Empoderando Refugiadas. A iniciativa é promovida em três capitais brasileiras (Brasília, Curitiba e Boa Vista) pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), ONU Mulheres e Pacto Global da ONU no Brasil. Em Brasília, ela é implementada pelo Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR).

  • Hilda cabeleireira refugiadas
    Hilda cabeleireira refugiadas Mayara Souto/C.B./D.A. Press
  • Hilda cabeleireira refugiadas
    Hilda cabeleireira refugiadas Mayara Souto/C.B./D.A. Press
  • Hilda refugiada
    Hilda refugiada Ed Alves/C.B./D.A. Press
  • Hilda refugiada
    Hilda refugiada Ed Alves/C.B./D.A. Press

O programa da Acnur é um dos exemplos dos projetos de acolhida do governo brasileiro, em parceria com organizações internacionais, para refugiados e migrantes. A maioria das pessoas que realizam esses deslocamentos internacionais está em situação de vulnerabilidade social. Por isso, elas têm direito aos serviços públicos oferecidos pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e inscrição no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico). Ambos dão acesso à educação, saúde, assistência social e também programas de transferência de renda. Até o último ano, 3,8 mil venezuelanos recebiam o Benefício de Prestação Continuada (BPC), para idosos (acima de 60 anos), e outros 135,5 mil o Bolsa Família.

No entanto, o desejo das 26 migrantes e refugiadas formadas pelo Senac, em dezembro de 2023, é alcançar uma recolocação no mercado de trabalho e também empreender. Algumas, realizaram entrevistas com empresas parceiras e aguardam o resultado e outras, como Hilda, viram o diploma como o que faltava para começar a empreender.

Com muita alegria, a venezuelana conta, no dia de sua formatura, que irá realizar o seu sonho de ter um salão de beleza. Uma filha sua está morando em Navegantes (SC) e a convidou para ajudá-la a criar um novo empreendimento.

Hilda explica que sempre gostou da área que pretende atuar. “Se trata da beleza da mulher, verdade? Eu gosto muito disso. De andar com os cabelos arrumados, ainda que eu não goste muito de maquiagem. Só batom, sobrancelha, cílios e mais nada”, comenta a cabeleireira, que em todas conversas com a reportagem estava bem arrumada, usando batom e com o cabelo impecável.

Hilda ainda compartilhou uma dica de beleza para a pele. Ela conta que desde os 28 anos deixou de usar base, pó, sombra, e guardou exclusivamente para momentos muito especiais. E, quando usa, sempre tira antes de dormir: “Por isso conservei minha pele assim”.

A idade, para ela, é motivo de alegria, já que soma tantas conquistas. “Sou uma mulher empoderada, com sete títulos [no Brasil]. Sou agradecida a Deus por isso, porque a verdade é que com 67 anos tenho a capacidade de estudar e seguir em frente”, finaliza.

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Reportagem: Mayara Souto | Edição: Andreia Castro | Coordenação: Carlos Alexandre de Souza e Mariana Niederauer| Fotos: Ed Alves | Vídeos: Arthur Ramos e Samuel Calado| Tecnologia: Patrick Lima e Vinícius Paixão


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