Execuções extrajudiciais e torturas sistemáticas, desaparecimentos forçados e detenções arbitrárias. De acordo com a Missão Internacional Independente de Determinação dos Fatos das Nações Unidas sobre a República Bolivariana da Venezuela, o regime do presidente Nicolás Maduro deve ser responsabilizado por esses crimes. Depois de investigar 223 casos e revisar outras 2.891 denúncias de violações dos direitos humanos, a missão produziu um relatório de 411 páginas que será apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU no próximo dia 23. A equipe de especialistas, chefiada pela jurista portuguesa Marta Valiñas (leia entrevista), concluiu que o governo de Maduro e os agentes do Estado cometeram “violações flagrantes” nos últimos seis anos. Segundo o dossiê, elas foram “altamente coordenadas com as políticas de Estado” e “configuram-se como crimes contra a humanidade”. “O presidente Maduro e os ministros do Interior e da Defesa estavam cientes dos crimes. Eles deram ordens, coordenaram atividades e forneceram recursos”, afirma o Conselho de Direitos Humanos da ONU.
O regime de Maduro desqualificou as acusações. “Um relatório repleto de falsidades, preparado de forma remota, sem qualquer rigor metodológico, por uma missão-fantasma dirigida contra a Venezuela e controlada por governos subordinados a Washington, ilustra a prática perversa de fazer política com os direitos humanos, e não política dos direitos humanos”, reagiu, em seu perfil no Twitter, o ministro das Relações Exteriores venezuelano, Jorge Arreaza. “Desde 2 de dezembro de 2019, temos afirmado que não reconhecemos nenhum mecanismo politizado e inquisidor, criado com fins ideológicos por países com péssimos históricos de direitos humanos, para agredir a Venezuela e tratar de prejudicar a relação com o Escritório da Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU (Michelle Bachelet)”, acrescentou o ministro. Em julho, a própria Bachelet criticou o regime de Caracas, ao divulgar relatório com denúncias de “detenções arbitrárias, violações às garantias ao devido processo legal e casos de tortura e desaparecimentos forçados”.
Resposta
Por telefone, Marta Valiñas disse ao Correio que, ante as declarações de Arreaza, mantém tudo o que está documentado no relatório da missão. “Nele, explicamos a metodologia seguida, a qual está de acordo com as práticas seguidas por outras missões de investigações, em que temos plena confiança. Somos uma missão de investigação criada pelo Conselho de Direitos Humanos. Somos independentes e, portanto, refuto as afirmações feitas pelo ministro Arreaza”, comentou.
A jurista disse acreditar que o relatório será bem recebido pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, ao qual será apresentado na próxima quarta-feira, e pela comunidade internacional. “O que mais queremos é que o governo venezuelano leia nosso relatório e aceite nossas recomendações como uma proposta sobre o que precisa ser feito, a fim de cessar as violações dos direitos humanos, garantir a responsabilização dos autores e dar justiça às vítimas.”
Valiñas e sua equipe debruçaram-se sobre 16 casos de operações das forças de segurança que resultaram em 53 execuções extrajudiciais. Também revisaram 2.552 incidentes envolvendo 5.094 assassinatos cometidos pela Polícia Nacional Bolivariana (PNB) e pelas Forças Armadas Bolivarianas, ainda que nem todas fossem necessariamente arbitrárias. A missão designada pela ONU descobriu que o Corpo de Investigações Científicas, Penais e Criminalísticas da Venezuela (CICP) e das Forças de Ação Especial da PNB foram responsáveis por 59% dos asssassinatos cometidos pelo Estado desde 2014.
As denúncias de tortura envolveram o Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin) e incluiram asfixiamento, espancamento, choques elétricos, cortes e mutilações, ameaças de morte e tortura psicológica. Homens e mulheres também foram submetidos a violência sexual e a choques nos genitais. Ex-preso de consciência, Villca Fernández, 39 anos, sentiu na pele os crimes atribuídos a Maduro. Preso entre janeiro de 2016 e junho de 2018 no Helicoide, o centro de detenção mantido pelo Sebin, ele contou ao Correio que sofreu torturas físicas e psicológicas. “Fui muito golpeado por 15 funcionários do Sebin. Meu braço esquerdo foi algemado em uma grade, onde fiquei ali, pendurado por cerca de um mês em um corredor escuro e cheio de ratos, insetos e vermes. Também isolaram-me durante meses em uma solitária, sem direito a sol, a água e a comida”, relatou. “Testemunhei torturas a outros presos, com correntes, pedaços de madeira e bombas de gases lacrimogêneo contra a cabeça.”
Depois de ser capturado em 19 de fevereiro de 2015, acusado de conspirar contra Maduro, e de fugir para Madri, em 18 de novembro de 2017, o ex-prefeito de Caracas, Antonio Ledezma, saudou o relatório da missão da ONU. “Como vítima dessas arbitrariedades, sinto satisfação em saber que é possível fazer justiça. Não tenho nenhum ânimo de vingança, mas uma inquebrantável determinação de lutar para que se faça justiça”, disse ao Correio. “Milhares de venezuelanos estão sob a terra, vítimas da tortura e da violência ordenada por Maduro. Esperamos que a Corte Penal Internacional aplique as sanções correspondentes. Que Maduro e sua camarilha paguem pelos crimes cometidos”, desabafou.
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» Entrevista / Marta Valiñas
“O Executivo deu ordens e descartou punição”
Durante o último ano, a jurista portuguesa Marta Valiñas, 40 anos, chefiou 13 especialistas de direitos humanos da Missão Internacional Independente de Determinação dos Fatos das Nações Unidas sobre a República Bolivariana da Venezuela. Impedida de entrar em território venezuelano, a equipe precisou trabalhar de forma remota. Depois de analisarem dezenas de materiais audiovisuais e de entrevistar várias vítimas, Valiñas admitiu ao Correio, por telefone, que autoridades de alto escalão da Venezuela chegaram a ordenar crimes contra a humanidade e garantiram a não punição por essas violações. De acordo com ela, os atos de tortura e de execções extrajudiciais cometidos pelos serviços de inteligência e pelas forças de segurança são “particularmente chocantes”.
Em que período a missão liderada pela senhora fez o levantamento de violações dos direitos humanos na Venezuela?
O mandato do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que criou essa Missão Internacional Independente de determinação dos fatos das Nações Unidas sobre a República Bolivariana da Venezuela, foi aprovado em setembro de 2019. Nós tivemos um ano de trabalho, mas isso traduziu-se em um período menor para a realização das investigações. Tivemos de criar uma equipe e começar o trabalho do zero. Isso quer dizer que nossas investigações foram mais intensas nos últimos meses, entre fevereiro e agosto de 2020.
Quantas pessoas estiveram envolvidas nesse trabalho e como ele se desenvolveu?
A nossa equipe estava constituída por 13 profissionais de direitos humanos, incluindo investigadores, uma especialista em gênero e violência sexual, um especialista em direito penal internacional, um em temas militares e outro em análise digital forense, além de uma pessoa responsável pela segurança das testemunhas. Infelizmente, não pudemos realizar atividades na Venezuela. Não pudemos visitar o país, tal como queríamos. Pedimos ao governo venezuelano que aceitasse nossa ida ao país para realizar as investigações. Até hoje, não obtivemos nenhuma resposta do governo venezuelano ao nosso pedido. Por isso, não pudemos ingressar no país. Também devido a outras restrições de viagens causadas pela pandemia da covid-19, tivemos de ajustar um pouco nossa metodologia de trabalho. Graças à tecnologia, foi possível, via remota, realizar várias entrevistas com vítimas e com uma série de outras fontes de informação que vivem na Venezuela e em outros países. Também foi muito importante poder contar com um membro de nossa equipe que é especialista em análise de informação digital. Nós analisamos dezenas de vídeos e de material audiovisual disponível ao público na internet, fizemos a geolocalização e os utilizamos para nossas investigações. Também tivemos acesso a declarações de membros do governo e de autoridades venezuelanas, além de uma série de documentos confidenciais e outros que fazem parte de processos judiciais em casos importantes para nós.
O fato de o regime ter impedido a presença dos investigadores pode ser visto como um atestado de culpa?
Eu não sei quais são as verdadeiras motivações para o governo venezuelano não permitir nossa entrada no país. É claro que ficamos muito desiludidos com essa falta de resposta absoluta às nossas comunicações. Até porque a Venezuela é um dos membros do Conselho de Direitos Humanos da ONU, e nós temos um mandato que nos foi dado por ele.
Quais foram as principais conclusões da investigação?
As conclusões às quais chegamos, depois desses meses de investigações, foram de que, efetivamente, ocorreram várias graves violações dos direitos humanos durante o período examinado, entre 2014 e 2020. Elas incluem execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias, torturas e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, incluindo violência sexual. Nós concluímos que esses abusos dos direitos humanos constituem crimes, não só de acordo com a Constituição venezuelana, mas com as normas do direito internacional. Eles foram perpetrados por membros das forças de segurança do Estado, as Forças Armadas Bolivarianas e a Polícia Nacional Bolivariana (PNB), incluindo o corpo de investigação criminal. Dentro da PNB, as Forças de Ação Especial. Os serviços de inteligência civil e militar estiveram envolvidos.
Quem deve ser responsabilizado por essas violações?
Não só os autores dessas violações têm responsabilidade por elas, mas também aqueles que tinham poder de decisão nessas entidades — tanto as forças de segurança do Estado quanto os serviços de inteligência — e membros do Executivo, como o presidente (Nicolás Maduro) e os ministros. Temos a informação de que eles tinham conhecimento das violações e continuaram a adotar planos e a fornecer materiais. Em alguns casos, deram ordens e descartaram a punição. Concluímos que autoridades de alto escalão e entidades estiveram envolvidos e contribuíram com os crimes.
Com base nas conclusões dessa investigação, Maduro é passível de julgamento pelo Tribunal Penal Internacional?
Temos motivos razoáveis para crer que Maduro e os ministros tiveram uma contribuição significativa para esses crimes. Em alguns casos, deram ordens. Também dizemos no relatório que não somos um organismo judicial. Nosso processo de investigação não é judicial. Cabe às autoridades competentes, seja a nível nacional, seja a nível internacional, analisar as investigações e determinar responsabilidades penais individuais.
Quais foram os crimes que mais chocaram a missão?
Entre os quatro tipos de violações que encontramos, eu diria que todos foram bastante chocantes. Os atos de tortura, cometidos sob custódia pelos serviços de inteligência, são particularmente chocantes. Eles foram cometidos contra indivíduos vistos como opositores do governo e contra militares envolvidos em rebeliões e em atentados contra o Estado, além de alguns dos manifestantes. São atos de uma violência muito pronunciada, inclusive de violência sexual. As execuções extrajudiciais também são particularmente chocantes. A informação de que dispomos indica que as forças de segurança não tentaram deter as pessoas, mas deliberadamente, cometeram execuções contra pessoas que viam como criminosas. Eles o fizeram de forma que a vítima ficava desprovida de defesa e retiraram familiares das casas dessas pessoas, para que não testemunhassem o que ocorreria.