O destino do presidente peruano, Martín Vizcarra, será decidido a partir das 9h de hoje (11h em Brasília) pelos 130 membros do Congresso unicameral — o qual o próprio chefe de Estado dissolveu em setembro de 2019 e convocou eleições legislativas. Horas antes de comparecer ao plenário para apresentar sua defesa e submeter-se à votação de impeachmet por “incapacidade moral”, Vizcarra designou, ontem, o advogado Roberto Pereira Chumbe e denunciou um “complô contra a democracia”. Para a cassação do presidente, são necessários 87 votos a favor da vacância do cargo. Ele é acusado de incitar assessores a mentirem sobre relações polêmicas com o cantor Richard Cisneros, com quem seu governo teria firmado contratos irregulares.
Ontem, o Tribunal Constitucional rejeitou medida cautelar, por meio da qual Vizcarra pretendia a suspensão do julgamento, sob a justificativa de que “o risco de vacância diminuiu”. As acusações contra o líder são mais uma capítulo de duas décadas de escândalos políticos a afetarem o país, com renúncias, prisões por corrupção e até suicídio de ex-presidente (Alan García, em 17 de abril de 2019).
Vizcarra mantém sua agenda normalmente e, ontem, acompanhado do ministro da Agricultura, visitou a região de Piura (norte), onde supervisionou obras ligadas à agricultura. Caso seja afastado do cargo, a Presidência do Peru será ocupada interinamento pelo chefe do Congresso, Manuel Merino. Em entrevista ao Correio, Milagros Campos Ramos — professora de direito constitucional e de política da Pontificia Universidad Católica del Peru — afirmou que a expectiva é pela não aprovação do impeachment. “Por aqui, acredita-se que não serão reunidos os 87 votos. Alguns dos presidentes de partidos mais importantes e lideranças políticas, como Keiko Fujimori, cuja bancada tem 15 congressistas; César Acuña Peralta, cujo partido Alianza para el Progreso conta com 22 integrantes; e algumas vozes do partido Acción Popular, com 25 membros, admitiram discordar da destituição”, explicou. “No Peru, é bem difícil prognosticar algo. Há muita imprevisibilidade e incerteza.” A maioria dos nove partidos representados no Congresso sinalizou que não apoiará a moção.
Fracasso
Por sua vez, José Elice Navarro, advogado, especialista em direito parlamentar e professor da Universidad Nacional Mayor de San Marcos (em Lima), concorda que aumentam as possibilidades de fracasso da moção de pedido de vacância presidencial. “Segundo pesquisas recentes, a opinião pública é majoritariamente contrária à destituição. Além disso, os indícios de delito enfraqueceram-se e não se encaixam em nenhuma tipificação penal. Há suspeitas de que, por trás da moção de vacância, existe uma conspiração muito bem pensada”, avaliou ao Correio. “Por outro lado, tudo isso não significa que as investigações sejam interrompidas. Antes do fim de seu mandato, Vizcarra poderá ter de comparecer ante os tribunais.” Para Navarro, Vizcarro precisará adotar a cautela, sob o risco de apresentação de novo pedido de vacância.
Ainda que Vizcarra tenha constituído um advogado, Milagros Campos explica que a presença do mandatário — ainda que virtual, por causa da pandemia — ante o Congresso é um mistério. “Os congressistas esperam que ele esclareça alguns temas da denúncia. Mas, Vizcarra negou-se a fazê-lo perante a Comissão de Fiscalização do Legislativo, que investigava essas contratações irregulares”, disse.
De acordo com ela, Vizcarra tem se sustentado, fundamentalmente, na aprovação popular. O chefe de Estado, um engenheiro de 57 anos, goza de popularidade desde a ascensão ao poder, em 2018, após a renúncia de Pedro Pablo Kuczynski, de quem era vice-presidente. Vizcarra jamais aproximou-se do Congresso, e, mesmo com a dissolução do Legislativo, não postulou apoio a um partido que lhe pudesse representar com uma bancada. “Se Vizcarra não contasse com a aprovação dos cidadãos, a solidão de um presidente sem partido e sem bancada seria um complicador. Principalmente, pelo fato de as eleições terem sido convocadas para abril de 2021”, observou a especialista.
A grande pergunta, segundo Milagros, é se, nas atuais condições, Vizcarra entregará o cargo em 28 de julho do próximo ano, ou se enfrentará novo processo de destituição antes disso. “Todos esperamos o cumprimento do calendário eleitoral. Vizcarra convocou as eleições de abril na primeira semana de julho. Nas próximas duas semanas, teremos claro quem são os partidos que disputarão o pleito.”
» Entenda o caso
Um cantor como pivô
O escândalo no qual o presidente Martín Vizcarra viu-se envolvido tem, como pivô, o polêmico cantor Richard Cisneros. O músico assinou uma ordem de serviço equivalente a R$ 10 mil e ganhou redes de contatos dentro da Casa de Pizarro, o palácio do governo. Em plena pandemia, o Ministério da Cultura teria contratado Cisneros para as funções de palestrante e apresentador, em contratos marcados por irregularidades. Áudios vazados revelam que Vizcarra pediu aos assessores para mentirem sobre o número de ocasiões que o cantor foi ao palácio. “Primeiro, é preciso ver o que é; depois, o que vai ser dito”, afirma o presidente em uma das gravações.
No áudio, as assessoras Miriam Morales e KaremRoca mencionam cinco visitas do artista à Casa de Pizarro. “É preciso dizer que ele entrou duas vezes”, em vez de cinco, pedeVizcarra. “O que fica claro é que, nessa investigação, todos nós estamos envolvidos”, acrescenta o presidente, na gravação.
» Eu acho...
“Qualquer que seja o resultado da votação de hoje, Martín Vizcarra sai politicamente debilitado, pois ficaram muitos ‘fios soltos’, muitas perguntas sem resposta. Penso que os próximos meses poderiam ser de simples ‘administração’. A crise atual é tão forte e extrema, que ao presidente não servirá muito o recurso de enfrentar o Congresso para conservar ou aumentar a própria popularidade.” José Elice Navarro, advogado, especialista em direito parlamentar e professor da Universidad Nacional Mayor de San Marcos (em Lima).
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Brasileiro deixa comando da CIDH
Em uma carta pública de três páginas, o mineiro Paulo Abrão despediu-se do cargo de secretário executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), depois que o secretário-geral, Luis Almagro, recusou-se a renovar o mandato do brasileiro. “Eu me despeço com o sentimento de ter cumprido uma missão importante nestes últimos quatro anos, sob a orientação da CIDH, e com o meu compromisso com as vítimas (de violações), além de ter reposicionado institucionalmente a comissão para redirecionar a atenção hemisférica na proteção aos direitos humanos de todas as pessoas das Américas”, afirmou. A OEA teria recebido “dezenas” de denúncias funcionais contra Abrão, que ocupava o cargo desde 27 de julho de 2016 e pleiteava novo mandato para o período 2020-2024. Ontem, a CIDH anunciou que elegerá um novo secretário executivo.
“Minha trajetória pessoal e profissional de 25 anos enfocou-se na defesa dos direitos humanos das pessoas e na realização da justiça. Meu primeiro compromisso é com o direito fundamental de denunciar, por parte de todas aquelas pessoas que sentirem seus direitos afetados. Por isso, respeito profundamente os denunciantes contra minha gestão”, escreveu Abrão. “Se os processos não se cumprem de acordo com a normativa e ante a autoridade competente, existe o risco de que as denúncias não sejam atendidas, em detrimento dos direitos das pessoas que as apresentaram. Isso é fundamental, sob risco de permitir a instrumentalização política da voz das vítimas e de gerar novas vítimas, cancelando a reparação, e impedindo-se a aprendizagem institucional e a não repetição”, acrescentou. Abrão também sublinhou que, “historicamente, sempre existiram pressões e interesses muito poderosos contra uma CIDH ativa, mais forte e eficiente”.
Em 25 de agosto passado, 10 dias após o término do mandato de Abrão, Almagro disse que não prorrogaria o contrato “devido à existência de dezenas de denúncias de natureza funcional” movidas contra o funcionário, e lamentou a “falta de tramitação” destas queixas como um “duro golpe” para a credibilidade da CIDH.
A Comissão informou que, em 25 de setembro, abrirá o processo de contestação para ocupação de sua secretaria executiva, em comunicado no qual reafirmou a importância de sua “autonomia e independência”, agradeceu e reconheceu “altamente” a gestão de Abrão. Também ontem, a CIDH — que considerou a decisão de Almagro um “ataque sério” — anunciou que buscou, nos últimos dias, “um diálogo institucional respeitoso” para superar esse atrito, apontando para a defesa da eleição de Abrão e do “devido processo” para o tratamento das reclamações dos funcionários.