RÚSSIA

Alemanha confirma envenenamento de opositor de Putin; Merkel cobra respostas

Alexei Navalny, principal adversário político do presidente Vladimir Putin, foi intoxicado com agente nervoso da categoria Novichok, anunciou a chanceler Angela Merkel. Berlim cobra respostas do Kremlin. Cientista que desenvolveu toxina fala ao Correio

O líder opositor russo Alexei Navalny, 44 anos, foi envenenado com um agente nervoso da categoria Novichok, o mesmo tipo usado para intoxicar o ex-espião duplo Sergei Skripal e a filha, Yulia, em 2018 (leia Memória), revelou o governo da Alemanha. “É certo que Alexei Navalny foi, definitivamente, vítima de um crime. Eles queriam silenciá-lo, e eu condeno isso, nos termos mais fortes possíveis, em nome do governo alemão”, declarou a chanceler Angela Merkel, ao citar uma “tentativa de assassinato”. “Nós exigimos que o governo russo forneça esclarecimentos sobre o incidente”, acrescentou.


De acordo com a líder alemã, a toxina do tipo Novichok foi detectada nas amostras analisadas por um laboratório militar. “Perguntas muito sérias são feitas agora, as quais apenas o governo russo pode e deve responder”, insistiu Merkel, ao destacar que “o crime contra Navalny é contrário aos valores e aos direitos fundamentais que defendemos”. O ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Heiko Mass, relatou que o embaixador russo em Berlim foi “convidado com urgência” a prestar esclarecimentos. O Reino Unido exortou a Rússia a dizer “a verdade” e ressaltou que o uso de uma arma química proibida é “absolutamente inaceitável”.


Em 20 de agosto, Navalny passou mal dentro de um avião, momentos depois de beber um chá no aeroporto de Tomsk, na Sibéria. Em comunicado divulgado nesta quarta-feira (2/9), o Hospital da Charité, em Berlim, afirmou que o paciente segue em estado “grave” e em coma. “Alexei Navalny está na unidade de terapia intensiva e sob ventilação mecânica. Um curso mais prolongado da doença é esperado. No futuro, não se exclui consequências de longo prazo do grave envenenamento”, diz a nota.


O Kremlin adotou a cautela e afirmou que o governo do presidente Vladimir Putin está “pronto para uma interação abrangente com a Alemanha, a fim de esclarecer as circunstâncias em torno da condição de saúde de Navalny”. “Estamos prontos e interessados em uma interação e intercâmbio total de dados sobre este assunto com a Alemanha”, admitiu o porta-voz, Dmitry Peskov. Anastasy Vasilyeva, médica de Navalny, escreveu no Twitter que crê nos alemães. “Os sintomas são consistentes (com Novichok). Na condição de médica, não tive permissão para examiná-lo.”

“Carregarei esta cruz”

O Correio entrevistou o cientista russo Vladimir Uglev (leia Eu acho), 74 anos, um dos responsáveis por sintetizar os agentes nervosos A-234 e A-232, conhecidos como Novichok, entre 1975 e 1976. “Eu não apenas sinto muito, como carregarei esta cruz até meu túmulo”, desabafou, ao ser questionado se arrepende-se de ter trabalhado para o programa de armas químicas da antiga União Soviética. “O desenvolvimento do Novichok foi uma decisão do Partido Comunista e do governo soviético. Era necessário criar uma substância 10 vezes mais tóxica do que o gás nervoso americano VX”, explicou.
Segundo Uglev, a letalidade dos agentes Novichok é bem alta, “mas ainda há esperança”. Ele acusa o governo russo de ser uma “camuflagem para bandidos no poder” e acrescenta que o Kremlin não reconhece a existência dessa classe de agentes nervosos.


Por e-mail, Mark Bishop, especialista em armas químicas do Instituto de Estudos Internacionais Middlebury, em Monterey (Califórnia), explicou que os alemães provavelmente analisaram o sangue e outros fluidos corporais de Navalny com um método conhecido como espectrômetro de massa e cromatografia a gás, cujos resultados são “muito confiáveis”. “Os agentes nervosos, incluindo os Novichoks, levam a uma ativação extremamente rápida dos neurônios, o que provoca a superestimulação do cérebro, causando convulsões. Os músculos se contraem rapidamente, o paciente tem cólicas intestinais e constrição do tubo brônquico. A supressão do centro respiratório do cérebro leva a pessoa exposta a parar de respirar”, detalhou. “Caso alguém sobreviva, significa que uma quantidade ínfima foi absorvida.”


De acordo com Bishop, a Rússia é o país onde provavelmente exista Novichok. “Não é preciso armazenar esse agente nervoso em grandes porções. Uma quantidade ínfima é suficiente para envenenar uma pessoa.” Ele acredita que, caso Moscou não seja o responsável, Navalny pode ter sido intoxicado por alguém que desejasse se passar pelos russos. “Mas, os russos parecem ter um claro motivo.”

Eu acho...


Apenas 30 miligramas de Novichok, em forma de gotas, são suficientes para matar uma pessoa entre 10 e 15 minutos. Não sei qual dos tipos de Novichok foi usado contra Alexei. Isso é muito importante, pois eles existem em dois estados, líquido e sólido. Os métodos de aplicação são diferentes.”

Vladimir Uglev, cientista russo que ajudou a desenvolver o Novichok, na década de 1970

Memória
Espião e filha contaminados

Em 4 de março de 2018, o agente duplo Sergei Skripal, 66 anos, e a filha, Yulia, 33, foram encontrados inconscientes sobre o banco de uma praça na cidade de Salisbury, no sudoeste da Inglaterra. Sergei entrou em coma e ficou hospitalizado até 18 de maio. Yulia recebeu alta em 10 de abril. Ambos foram contaminados com o agente nervoso Novichok. O policial britânico Nick Bailey também entrou em contato com a substância e ficou internado por 18 dias. As suspeitas recaíram sobre o governo da Rússia. Skripal é um coronel da inteligência russa condenado, em 2006, a 13 anos de prisão por repassar informações ao Reino Unido.

Dawn Sturgess, 44 anos, uma britânica que foi exposta acidentalmente ao Novichok, não resistiu e morreu, em julho de 2018. Ela acabou intoxicada ao borrifar a substância, que estava dentro de um frasco de perfume. A descontaminação de Salisbury durou quase um ano. O incidente provocou grave crise diplomática entre a Rússia e vários países ocidentais, que expulsaram 150 funcionários diplomáticos russos. Moscou adotou a reciprocidade e expulsou 300 funcionários dessas nações.

Moscou reforça apoio a autocrata bielorrusso

O Kremlin confirmou, nesta quarta-feira (2/9), a visita do primeiro-ministro russo, Mikhail Mishustin, e um encontro entre Vladimir Putin e Alexander Lukashenko. O anúncio representa o tácito apoio de Moscou ao autocrata bielorusso, em meio a uma onda de protestos que sacode a capital, Minsk, e se espalha para o interior. Mishustin é aguardado hoje, em Minsk, para a primeira visita oficial de uma autoridade russa dessa categoria desde o início da crise política na Bielorrússia, que se arrasta há quase um mês.

Aos 66 anos, Lukashenko está no poder desde 1994 e recusa-se a dialogar com os críticos, apesar de manifestações quase diárias, algumas delas gigantescas, para denunciar sua reeleição. A oposição classifica como fraudulenta a sua vitória na eleição presidencial de 9 de agosto. Até agora, Lukashenko apenas mencionou a vaga ideia de uma revisão constitucional para responder à insatisfação popular. A abordagem de Minsk é considerada adequada por Moscou, enquanto a repressão se mantém.


Ao receber o homólogo bielorrusso, Vladimir Makei, em Moscou, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, informou que Lukashenko será recebido pelo presidente Vladimir Putin “nas próximas duas semanas”. Ele também denunciou as tentativas de desestabilização da Bielorrússia, além das declarações “destrutivas” da Ucrânia, da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e da União Europeia (UE). Lavrov considerou “intolerável” a ideia de mediação estrangeira entre o poder e a oposição, excluindo qualquer diálogo com esta última.
Por sua vez, Makeu saudou o posicionamento “ponderado” de Moscou. A Rússia tem mostrado sinais crescentes de apoio ao presidente bielorrusso, à medida que ele intensifica os ataques, denunciando uma conspiração ocidental contra seu governo. As relações entre a Rússia e a Bielorrússia estiveram tensas na primavera e no começo do verão. Lukashenko chegou a acusar Putin de tentar expulsá-lo do poder para controlar seu país.


O autocrata bielorrusso agradeceu, de modo efusivo, pelo apoio da emissora de televisão pública russa RT — a qual o Ocidente considera uma arma de propaganda do Kremlin. O homem-forte da Bielorrússia também proclamou publicamente que “nunca se afastou da Rússia”, ao argumentar que os bielorrussos e os russos têm uma única e mesma “pátria”.