CRISE MIGRATÓRIA

Diplomata dos EUA se demite e denuncia deportações "desumanas" de refugiados

Daniel Foote, enviado dos EUA para o Haiti, apresenta renúncia, depois de dois meses no cargo. Diplomata denuncia deportações "desumanas" de milhares de refugiados e de haitianos ilegais. Casa Branca suspende patrulhas a cavalo na fronteira

Rodrigo Craveiro
postado em 24/09/2021 06:00
Haitianos seguram em corda para cruzar o Río Grande e chegar aos EUA (acima), onde muitos são  perseguidos por agentes dos EUA montados a cavalo  -  (crédito: Paul Ratje/AFP)
Haitianos seguram em corda para cruzar o Río Grande e chegar aos EUA (acima), onde muitos são perseguidos por agentes dos EUA montados a cavalo - (crédito: Paul Ratje/AFP)

A carta de renúncia assinada por Daniel Foote, enviado especial dos EUA ao Haiti, e endereçada ao secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, deu a medida exata da proporção da crise migratória na fronteira com o México. “Eu não estarei associado à decisão desumana e contraproducente dos Estados Unidos de deportar milhares de refugiados haitianos e imigrantes ilegais para o Haiti”, escreveu o diplomata. “Nossa abordagem política para o Haiti permanece profundamente defeituosa, e minhas recomendações têm sido ignoradas e descartadas, quando não editadas para projetarem uma narrativa diferente de meu ponto de vista.” Além das deportações, agentes da Patrulha Fronteiriça dos EUA foram flagrados, em vídeos e fotos, montados a cavalos em perseguição aos haitianos na região de Del Río, no Texas.

Após estarrecerem a Casa Branca e o Congresso, as imagens forçaram o Departamento de Segurança Interna (DHS, pela sigla em inglês) a suspender o uso dos cavalos. O secretário de Segurança Nacional, Alejandro Mayorkas, “informou nesta manhã aos líderes dos direitos civis que não usaremos mais cavalos em Del Río”, declarou a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki. “Nós interrompemos, temporariamente, o uso da patrulha a cavalos em Del Río. Vamos priorizar outros métodos para identificar indivíduos que possam estar em perigo de saúde”, admitiu um funcionário do DHS. Na mexicana Ciudad Acuña, cidade vizinha a Del Río, dezenas de policiais do México irromperam um acampamento de imigrantes, antes do amanhecer, e obrigou muitos a retornarem para Tapachula, a 2.452km, próximo à fronteira com a Guatemala. Eles rejeitaram abandonar o local.

Para Stephen Yale-Loehr — professor de práticas de leis de imigração da Universidade de Cornell —, a renúncia de Foote intensifica a pressão política para que Biden suavize a posição do governo em relação à deportação dos haitianos. “As inúmeras situações de migração, incluindo afegãos e pessoas tentando cruzar a fronteira entre EUA e México, torna mais difícil para o presidente Biden avançar em sua agenda legislativa sobre a imigração. Dadas as críticas direcionadas ao governo, com ou sem razão, é muito mais difícil persuadir o Congresso a legalizar vários milhões de imigrantes”, afirmou ao Correio.

Especialistas

Por sua vez, Steve Forester, coordenador de Política de Imigração do Instituto para Justiça e Democracia no Haiti (em Boston), explicou à reportagem que a decisão de Foote não está associada apenas às deportações de haitianos, mas à “política fracassada dos Estados Unidos para o Haiti”. “Há mais de uma década, os governos norte-americanos apoiaram líder corruptos e antidemocráticos às custas da sociedade civil”, lembrou. “Os haitianos amam seu país e querem permanecer no Haiti. A política da Casa Branca para o país caribenho tem sido de mão pesada. Espero que a renúncia de Foote obrigue o presidente Biden a apoiar a sociedade civil no Haiti, a qual, além de competente, está pronta para assumir suas funções.” Forester sublinha que a democracia é importante não apenas para os norte-americanos, mas também para o povo haitiano.
Doutor em estudos latino-americanos e professor de análise política da Universidade de Estado do Haiti, Elinet Daniel Casimir explicou ao Correio que o problema migratório envolvendo os haitianos remonta ao século passado. “Nessa trajetória, encontram-se muitos aspectos que têm relação com a vida social, política e econômica da sociedade do Haiti. Vivemos sob a lupa dos Estados Unidos. Os haitianos praticamente não têm vida. Os políticos e alguns grupos organizados têm a responsabilidade por essa situação tão delicada e complexa”, afirmou. “Como os EUA não pensam em ajudar o meu povo? Estamos diante do direito internacional sobre a migração, dos direitos humanos e de convenções internacionais. Nestes acordos, existe um fator muito importante: o capital humano. Todo mundo vê que o povo haitiano está farto de tudo. Algumas pessoas abandonaram o país rumo ao Chile, ao Equador, à Argentina e ao Brasil, e, sobretudo, aos Estados Unidos”, acrescentou.

Casimir lembra que os haitianos têm direito de solicitar asilo. “A deportação deles pode ser analisada desde um duplo aspecto em matéria de direitos humanos: a humilhação racial e o descobrimento perverso da face dos Estados Unidos”, disse o estudioso, morador de Porto Príncipe.

“Eu não estarei associado à decisão desumana e contraproducente dos Estados Unidos de deportar milhares de refugiados haitianos e imigrantes ilegais para o Haiti”

“Nossa abordagem política para o Haiti permanece profundamente defeituosa”

Daniel Foote, enviado especial do Departamento de Estado norte-americano para o Haiti

» Analise da notícia
Começo turbulento
Com 247 dias no comando dos Estados Unidos, o presidente Joe Biden enfrenta um início de governo conturbado. Em pouco mais de um mês, o democrata amargou três crises de grandes proporções — duas na política externa e uma no cenário doméstico. A retirada militar acelerada do Afeganistão, depois que o Talibã reassumiu o controle do país, causou mal-estar entre os EUA e os integrantes da coalizão militar que ocupou o território afegão por 20 anos. O retorno da milícia fundamentalista islâmica, depois da capitulação vergonhosa do Exército do Afeganistão e da fuga do presidente Ashraf Ghani, escancarou a falta de estratégia norte-americana. Biden viu-se obrigado a explicar o inexplicável.
Em 15 de setembro, os Estados Unidos selaram um acordo bilionário para a venda de submarinos com propulsão nuclear para a Austrália. Detalhe: os australianos tinham assinado um pacto para construir submarinos convencionais, seguindo um projeto francês. Com a desistência do negócio, a França ficou a ver navios e denunciou uma punhalada pelas costas. Foi preciso um mea-culpa de Biden para resfriar a crise e tentar salvar a confiança entre históricos parceiros comerciais.
No cenário interno, pelo menos 12 mil imigrantes ilegais — a maioria de haitianos — montaram acampamento sob uma ponte da cidade de Del Río, no Texas, no lado norte-americano do Río Grande. Biden decidiu pela deportação em massa, a mesma política defendida pelo antecessor, o republicano Donald Trump. Na quarta-feira, pesquisa do instituto Gallup revelou que Biden atingiu a mais baixa popularidade em oito anos de governo: 43%. Pela primeira vez, mais de 50% (53%) da população desaprova a gestão democrata. (RC)

» Eu acho...

“A Casa Branca está presa em um dilema político. O presidente Joe Biden herdou as crises migratórias em grande parte deflagradas por Donald Trump. Não existe uma solução fácil ou rápida para esses problemas.”

Stephen Yale-Loehr, professor de práticas de leis de imigração da Universidade de Cornell

 

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Venezuelanos fogem da Bolívia para o Chile

 (crédito: Martin Bernetti/AFP)
crédito: Martin Bernetti/AFP

Centenas de migrantes com filhos, a maioria de venezuelanos, entraram no Chile, ontem, por meio de travessias clandestinas na fronteira com a Bolívia, apesar de o governo chileno anunciar que retomará as deportações de quem entrar irregularmente no país. Os migrantes, em busca de ajuda básica e abrigo, entram constantemente ao longo do dia por Colchane, uma cidade rural de pouco mais de mil habitantes, situada nas terras altas.

Junto com a migração clandestina neste lugar árido e extremamente frio, a mais de 3.600 metros de altitude, o negócio do transporte ilegal também cresceu, e o preço de levar um migrante para as cidades chega a US$ 70 (cerca de R$ 370) por pessoa, confirmaram jornalistas da agência France-Presse (AFP).

“Se alguém me der água, tudo passa. Isso é para enlouquecer”, reclamou Xiomara R., de 30 anos, arrastando um carrinho com um bebê coberto por mantas e casacos de adulto, em uma manhã de 2ºC e picos de neve.

Ao entrar no Chile, Xiomara caminhou até uma delegacia para “se denunciar”, como dizem as autoridades. Os nomes das pessoas que se entregam são incluídos em um registro oficial. Isso ajuda mulheres e crianças a serem transferidas para Iquique, cidade portuária no norte do Chile, mais de 1.800 quilômetros ao norte de Santiago.

Soldados

“Somos mais de 100 soldados destacados neste ponto da fronteira. Um controla uma parte e centenas passam do outro lado. Este mês tem sido intenso, eles não param de chegar”, disse à AFP um militar que pediu para não revelar a identidade, estacionado perto de um marco que separa o Chile da Bolívia.

Três tendas da Organização Internacional para as Migrações (OIM), dispostas ao lado da delegacia, estão repletas de migrantes que dormem ali para evitar o frio extremo da noite e da manhã. Há também uma igreja que serve de abrigo e várias organizações que fornecem alimentos.

Por enquanto, nenhuma medida parou o fluxo diário de migrantes, principalmente de venezuelanos, embora também haja muitos colombianos, especialmente de Buenaventura e Valle del Cauca, além de alguns dominicanos.

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