Passava das 17h30 (12h30 em Brasília) de ontem quando o cientista político ucraniano Olexiy Haran mostrou-se abalado ao conversar com o Correio. "Acabo de escutar 10 grandes explosões nas imediações de minha casa. Desculpe-me pela emoção. É realmente algo duro. Os russos são fascistas", desabafou o professor de política comparativa da Universidade Nacional de Kiev-Mohyla (Ucrânia), que mora no distrito de Obolon, na região norte de Kiev. Sob ataques cada vez mais intensos, a capital ucraniana recebia os premiês da Polônia (Mateusz Morawiecki), da República Tcheca (Petr Fiala) e da Eslovênia (Janez Jansa). Os primeiros líderes a visitarem Kiev durante a guerra desembarcaram de trem e se reuniram com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e o premiê, Denys Shmygal.
Também ontem, negociadores da Ucrânia e da Rússia encerravam mais uma rodada de diálogo sem êxito. Mykhailo Podoliyak, enviado de Zelensky, apontou "profundas contradições" nos diálogos com a Rússia, mas tentou mostrar algum otimismo. "Vamos continuar amanhã [quarta-feira]. É um processo de negociação complicado e extremamente trabalhoso. Existem profundas contradições. Mas, certamente, um compromisso é possível", escreveu no Twitter.
Até o fechamento desta edição, em 20 dias de guerra, pelo menos 3 milhões de civis fugiram da Ucrânia. Duas pessoas morreram nos bombardeios desta terça-feira em Kiev. Um prédio de 15 andares, no bairro de Sviatoshin (oeste), pegou fogo após ser atingido por um míssil, e 27 pessoas foram resgatadas ilesas. "Às 4h20, tudo tremeu com força. Levantei, minha filha correu e perguntou: 'Você está viva?'. Mas em um dos quartos não conseguimos tirar meu genro e meu neto, então, quebramos as portas e eles conseguiram sair", declarou à agência France-Presse Lyubov Gura, de 73 anos, que morava no 11º andar.
Pouco antes do encontro com os primeiros-ministros, Zelensky declarou que a Ucrânia deve aceitar que não há portas abertas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para o seu país. "A Ucrânia não é um membro da Otan. Entendemos isso. Durante anos, ouvimos que as portas estavam abertas, mas também ouvimos que não podíamos aderir. Essa é a verdade e precisa ser reconhecida", comentou, durante videoconferência com a Força Expedicionária Conjunta, liderada pelo Reino Unido. O projeto de adesão de Kiev à aliança militar ocidental foi um dos motivos que teriam levado o presidente russo, Vladimir Putin, a invadir a ex-república soviética.
Ainda a bordo do trem, o premiê polonês Morawiecki publicou três fotos da comitiva e um recado aos ucranianos. "É aqui, na Kiev devastada, que a história está sendo feita. É aqui que a liberdade luta contra o mundo da tirania. É aqui que o futuro de todos nós está na balança. A União Europeia (UE) apoia a Ucrânia, que pode contar com a ajuda de seus amigos — trouxemos essa mensagem a Kiev", escreveu.
Por sua vez, o finlandês Petr Fiala publicou que "o objetivo da viagem é expressar o inequívoco apoio da UE à Ucrânia e à liberdade e independência". A viagem foi organizada em "concordânia" com o líder do Conselho Europeu, Charles Michel, e a presidente da Comissão Europeia (órgão executivo do bloco), Ursula von der Leyen. Algumas autoridades da UE viram a viagem com reservas por conta do risco à segurança.
Olexiy Haran elogiou a iniciativa de Bruxelas e lembrou que, quando a Rússia atacou a Geórgia, em 2008, os presidentes da Ucrânia e da Polônia viajaram a Tbilisi, prestes a ser invadida pelas forças de Moscou. "Essa comitiva é importante para a mobilização internacional, mas não acho que será o bastante para forçar Putin a parar com a guerra. Isso ocorrerá com o reforço das sanções, como a desconexão de todos os bancos russos do sistema Swift. Precisamos de caças e de um sistema de defesa aérea", defendeu o especialista.
Para Urban Oksana Anatoliyivna, professora de relações econômicas internacionais pela Universidade Técnica Nacional de Lutsk (noroeste), o recado da comitiva a Kiev é claro. "Todos os europeus estão defendendo a Ucrânia e em solidariedade para conosco", disse à reportagem. "A Rússia ataca às portas das fronteiras da Otan. Se Putin não for parado, toda a Europa sofrerá. A Otan e a UE não querem uma guerra em seu território."
Saiba Mais
Diplomacia
Zelensky segue em sua campanha diplomática para angariar ajuda do Ocidente. Em discurso ao Parlamento do Canadá, onde foi aplaudido de pé, fez um apelo emocionado aos legisladores. "Queremos viver e ser vitoriosos. Queremos prevalecer, pelo bem da vida. Quantos mísseis mais precisarão cair sobre nossas cidades até que vocês fechem o espaço aéreo?", questionou. Às 10h de hoje (hora de Brasília), o presidente ucraniano fará novo pronunciamento virtual, desta vez ao Congresso dos Estados Unidos.
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Palavras de especialistas
"Nós, ucranianos, precisamos de garantias de segurança. Se elas não partirem da Otan, podem ser outro tipo de garantia. Poderia ser um tratado com salvaguardas concretas dos signatários. Isso incluiria os Estados Unidos, o Reino Unido, a França e outros países. Passaria pela interrupção completa dos bombardeios. Toda a retórica de Vladimir Putin sobre a Otan é puro blefe. Não há mísseis, soldados ou bases militares da Otan na Ucrânia. A meta de Putin é esmagar a Ucrânia. Com uma Ucrânia independente, ele será incapaz de restaurar o Império Russo."
Olexiy Haran, professor de política comparativa da Universidade Nacional de Kiev-Mohyla (Ucrânia)
"Uma recente pesquisa aponta que 72% dos ucranianos apoiam a adesão do país à Otan. Isso mostra a insatisfação da sociedade ucraniana com a resposta da Otan à invasão russa. Os ucranianos precisam de um apoio militar mais substancial da aliança ocidental. Enquanto isso, a organização continua a negar que este conflito é uma guerra russa contra o Ocidente, não apenas contra a Ucrânia. A declaração de Zelensky tem dois objetivos: transmitir a decepção de seu povo; ou pode ser uma tentativa desesperada de fazer com que a Otan perceba a importância e a necessidade de sua ajuda para a Ucrânia."
Anton Suslov, especialista da Escola de Análise Política (NaUKMA), em Kiev
Prefeito convida papa Francisco
O prefeito de Kiev, Vitali Klitschko, escreveu uma carta ao papa em que convida Francisco à capital ucraniana para lançar um pedido de paz. Em resposta, o pontífice pediu aos ucranianos que rezem "ao Senhor para que sejam protegidos da violência" e reiterou seu apelo para "deter a agressão armada inaceitável" contra aquele país. O porta-voz do papa Matteo Bruni não confirmou se o líder católico concordou em visitar Kiev, nem se aceitaria participar de uma videoconferência conjunta proposta pelo prefeito caso não pudesse viajar. "O Santo Padre recebeu a carta do prefeito da capital ucraniana e está próximo do sofrimento da cidade, de seu povo, daqueles que tiveram que fugir e daqueles que são chamados a administrá-la", informou a assessoria de imprensa do Vaticano.