Guerra na Europa

Intensificação de bombardeios na Ucrânia reduz chance de cessar-fogo

Moscou intensifica bombardeios a alvos civis, e Kiev ignora prazo para a rendição de cidades. Presidente Volodymyr Zelensky exige que eventuais compromissos firmados com invasores sejam submetidos a referendo e volta a cobrar reunião com Putin

Rodrigo Craveiro
postado em 22/03/2022 06:00
Shopping center Retroville em escombros, após bombardeio a área residencial da capital: oito mortos por míssil hipersônico -  (crédito: Aris Messinis/AFP)
Shopping center Retroville em escombros, após bombardeio a área residencial da capital: oito mortos por míssil hipersônico - (crédito: Aris Messinis/AFP)

A intensificação de bombardeios contra civis e o fracasso de um ultimato da Rússia às cidades de Mariupol (sudeste) e Kharkiv (nordeste), e à capital Kiev, reduziram a possibilidade de um acordo de cessar-fogo na Ucrânia. O presidente Volodymyr Zelensky declarou que qualquer "compromisso" obtido pelos negociadores dos dois países deverá ser submetido a um "referendo" e descartou atender a prazos impostos por Moscou. "A Ucrânia não pode aceitar nenhum ultimato da Rússia. Em primeiro lugar, eles terão que destruir todos nós, só então seus ultimatos serão respeitados", avisou. 

Zelensky insistiu na necessidade de uma reunião, "da maneira que for", com o homólogo russo, Vladimir Putin. "Sem esta reunião é impossível entender completamente o que eles (os russos) estão prontos para fazer parar a guerra", afirmou, em entrevista à Suspilne, um portal de comunicação regional ucraniano.

Até o fechamento desta edição, 3,4 milhões de refugiados abandonaram a Ucrânia — outros 10 milhões tornaram-se deslocados internamente.  Por várias vezes, Zelensky citou a vontade de se encontrar pessoalmente com Putin para discutirem uma solução para o conflito. O pedido de ontem foi especialmente insistente. O líder ucraniano advertiu que Mariupol está sendo "reduzida a cinzas, mas sobreviverá". Os bombardeios russos ocorrem em intervalos de 10 minutos. Pelo menos 100 mil dos 450 mil moradores conseguiram fugir. Os 350 mil civis que ficaram estão cercados pelas forças invasoras. 

Natural de Mariupol, o estudante de ciência política Parkhomenko Vyacheslavovi tem conversado todos os dias com amigos e familiares da cidade, depois de se refugiar em Kropyvnytskyi (centro). "Creio que 80% das construções de Mariupol foram arrasadas. Os russos destruíram um teatro que abrigava centenas de mulheres e seus filhos. Os moradores escreveram a palavra 'crianças' no chão, de forma que os pilotos dos aviões pudessem avistá-la. De nada adiantou", lamentou. "Os russos isolaram Mariupol do mundo exterior e continuam a pressionar os civis. As pessoas não vivem lá, elas sobrevivem." Desde 2 de março, não há luz, água, nem aquecedores. 

Odessa

Emil Heleta, 19 anos, mora com os pais e dois irmãos no centro de Odessa. Por volta das 6h30 de ontem (1h30 em Brasília), navios de guerra da Rússia dispararam contra a cidade portuária situada na parte noroeste da Península da Crimeia, às margens do Mar Negro. "O ataque ocorreu a 11km da região de minha casa e teve um impacto mais psicológico do que sobre a infraestrutura. Alguns dos refugiados com quem conversei que pretendiam retornar mudaram de plano", disse ao Correio. "Muitas pessoas abandonaram Odessa. Eu e minha família selamos as janelas com fitas e preparamos o porão para o caso de um grande bombardeio. Também arrumamos água potável e comida."

Morador olha pela janela de sua casa destruída, em Odessa
Morador olha pela janela de sua casa destruída, em Odessa (foto: Oleksandr Gimanov/AFP)

Em Kiev, capital da Ucrânia, o shopping Retroville foi transformado em escombros após um ataque "com armas de precisão de longo alcance", no fim da noite de domingo. Repórteres da agência France-Presse viram seis cadáveres cobertos no chão. "Malditos terroristas russos!", balbuciava um padre ortodoxo, enquanto caminhava entre os mortos. Mykola Volkivskyi, ex-assessor do presidente do Parlamento (2014-2021) e cientista político, afirmou à reportagem que a capital inteira escutou a explosão. "O shopping foi atingido por um míssil hipersônico. Aconteceu às 22h44 de anteontem (hora local). Não existe base militar no estacionamento ou nas imediações. Os russos querem intimidar as pessoas e levá-las à rendição, mas isso não vai ocorrer." A Rússia insiste que o Retroville servia de "depósito de armas". 

Para Volkivskyi, o número crescente de refugiados exerce pressão sobre a sociedade e sobre Zelensky. "Muitas cidades foram destruídas, a infraestritura militar está seriamente danificada, e nosso povo sofre. Há temas sociais, como a educação, o emprego e a estabilidade do sistema econômico. Precisamos de paz, e apenas a população ucraniana pode tomar decisões", comentou. "Levará uns seis meses para organizarmos um referendo. Enquanto isso, os russos reagruparão suas tropas. De qualquer forma, precisamos de uma pausa."

Secretário-geral da Associação Internacional de Estudantes de Ciência Política na Ucrânia e morador de Okhtyrka (leste), Yehor Holivets, 18 anos, se mostra pessimista. "Para um acordo de paz, a Crimeia deveria retornar à  Ucrânia; e as tropas russas precisariam sair de Donbass e de todo o país. Qualquer coisa além disso será apenas mais tempo para o inimigo acumular forças", afirmou ao Correio.

O analista Artem Oliinyk explicou que Zelensky considera necessário legitimar o acordo com o Kremlin, a fim de evitar divisões internas. Ele acha difícil estipular os temas da consulta. Por lei, questões destinadas a eliminar a independência da Ucrânia, a violar a soberania e a integridade territorial, ou a incitar o ódio étnico não podem ser objetos de referendo.


Foguete não detonado atinge cemitério de Mylovaiv, no sul do país
Foguete não detonado atinge cemitério de Mylovaiv, no sul do país (foto: Bulent Kilic/AFP)

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  • Morador olha pela janela de sua casa destruída, em Odessa
    Morador olha pela janela de sua casa destruída, em Odessa Foto: Oleksandr Gimanov/AFP
  • Foguete não detonado atinge cemitério de Mylovaiv, no sul do país
    Foguete não detonado atinge cemitério de Mylovaiv, no sul do país Foto: Bulent Kilic/AFP

"Eu resgatei 25 pessoas de Mariupol"

 (crédito: Arquivo pessoal)
crédito: Arquivo pessoal

Roman Kruglyakov

"Nasci em Mariupol. Em 24 de fevereiro, às 5h da madrugada, fui acordado por uma forte explosão. Eu, minha esposa e nossos filhos decidimos nos abrigar no vilarejo de Urzuf, a 50km da cidade. Retornei a Mariupol por três vezes, a fim de resgatar amigos. Em 17 de março, fiz duas viagens para lá e outra em 19 de março. Consegui retirar de lá 25 pessoas, entre elas nove crianças.

As ruas estavam repletas de lixo e de carros incendiados. Foi muito perigoso mover-me até o centro da cidade, pois existia o risco de não conseguirmos retornar. Havia muito vidro estilhaçado pelo caminho, e os pneus do carro poderiam ter estourado. Vi três corpos abandonados. As bombas caíam perto de nós.

Entre 50% e 60% de Mariupol ficou destruída. A maioria dos edifícios acima de cinco andares foi seriamente danificada. A situação é dramática. Os moradores estão abrigados em porões, deitados no chão. Ninguém pode se mover. Esta foto mostra o alívio assim que saímos dos limites de Mariupol."

Gerente de projetos, 32 anos,

refugiado com a família em Urzuf, a 50km de Mariupol

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