Guerra no leste europeu

Rússia anuncia mudança de foco em ataques na guerra da Ucrânia

Vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da Rússia afirma que o objetivo, a partir de agora, será a "libertação" da região de Donbass, no leste da Ucrânia

Rodrigo Craveiro
postado em 26/03/2022 06:00
 (crédito: Aris Messinis / AFP)
(crédito: Aris Messinis / AFP)

Glib Mazepa, 35 anos, não se surpreendeu com a foto que abre esta página. "É mais uma explosão comum", disse ao Correio, ao ser questionado sobre o contexto da imagem do homem em fuga, próximo a um carro e a uma casa em chamas. Os dias têm sido assim em Kharkiv, no nordeste da Ucrânia. "O aeroporto foi atacado de madrugada; um hipermercado, pela manhã... Também dispararam contra uma fila de pessoas que buscavam ajuda. Seis civis morreram", comentou o pós-doutorando. Ao norte, a 183km, em Sumy, o cientista político Mykola Nazarov contou que a cidade foi bloqueada pelas tropas russas. "Está muito difícil em Trostyanets, que vive o horror da ocupação. Okhtyrka tem sido bombardeada de forma incessante, e a destruição é enorme." Um anúncio do Estado-Maior Conjunto da Rússia causou surpresa e foi visto por Glib, por Mykola e por outros ucranianos como um atestado de fracasso da guerra de Vladimir Putin.

O comando militar de Moscou informou que, a partir de agora, o objetivo das tropas russas será a "libertação" de Donbass, região no leste da Ucrânia, de língua majoritariamente russa. De acordo com Sergei Rudskoy, vice-chefe do Estado-Maior, "os principais objetivos da primeira fase da operação foram alcançados". Ele assegurou que "a capacidade de combate das forças ucranianas foi significativamente reduzida".

Para Arteem Oliinyk, diretor do Instituto de Relações de Governo, em Kiev, ocorre exatamente o oposto. "Na quarta-feira passada, vários bairros da capital foram atingidos com foguetes 'Grad'. Hoje (ontem), foi impossível os russos realizarem esse tipo de ataque. O Exército ucraniano os afastou para uma região a mais de 70km de Kiev. As sirenes antiaéreas soavam o dia todo, enquanto a Rússia lançava mísseis contra as cidades de Vinnytsia, Dnipro e Zhytomir. Está claro que a atividade inimiga diminui. Os russos dispararam mais de 1,2 mil mísseis e perderam 200 aeronaves e helicópteros", disse à reportagem.

Oliinyk acredita que autoridades do Kremlin são forçadas a reconhecer o fracasso da guerra declarada. "Não se trata apenas da perda sem precedentes. Com a prontidão da Europa e dos EUA em impôr sanções, a economia russa está inviável. Nosso presidente (Volodymyr Zelensky) tem repetido que as negociações não podem se basear na integridade territorial do país. Donbass, Crimeia e Sevastopol pertencem a nós, ucranianos", comentou.

Pela primeira vez, a Rússia divulgou números sobre suas supostas baixas no front: o próprio Rudskoy, do Estado-Maior Conjunto, declarou que 1.351 soldados russos morreram e 3.825 ficaram feridos. As estimativas são muito aquém daquelas divulgadas pela Ucrânia — 15,8 mil militares mortos ou feridos.

Em demonstração de apoio e de solidariedade aos refugiados, o presidente dos EUA, Joe Biden, visitou a cidade polonesa de Rzeszow, a 70km da fronteira com a Ucrânia e aproveitou para alfinetar a China, ao destacar a "resiliência" e a "coragem" do povo ucraniano. "Quando você vê uma mulher de 30 anos parada em frente a um tanque com uma arma (...), estamos falando da Praça de Tiananmen, isso é a praça de Tiananmen ao quadrado", referindo-se às manifestações de 1989 em Pequim, que levaram ao Massacre da Praça da Paz Celestial.

Ao discursar para soldados norte-americanos do flanco leste da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Biden advertiu que, na Ucrânia, corre perigo um valor que atravessa fronteiras. "O que está em jogo não é apenas o que estamos fazendo aqui para ajudar o povo ucraniano e impedir que o massacre continue, mas, além disso, é a liberdade dos filhos e dos netos dos ucranianos", declarou Biden.

O presidente voltou a chamar Putin de "criminoso de guerra" e alertou que as consequências do conflito poderão se estender para todo o mundo. A visita a Rzeszow foi interpretada também como gesto de força da Otan.

A agência France-Presse informou que as tropas russas foram forçadas a recuar para regiões no entorno de Kiev e enfrentaram uma contra-ofensiva em Kherson (sul). Forças ucranianas tentavam, ontem, retomar o controle da única grande cidade em posse dos russos, desde 24 de fevereiro. Também ontem, as autoridades ucranianas revelaram que ao menos 300 civis morreram no bombardeio a um teatro que servia de abrigo a mais de mil pessoas, em Mariupol (leste).

Derrota

Olexiy Haran, professor de política comparativa da Universidade Nacional de Kiev-Mohyla (Ucrânia), entende a manobra russa como "a derrota dos planos iniciais de Putin". "As tropas do Kremlin pretendiam capturar Kiev, derrubar Zelensky e estabelecer repúblicas populares em toda a Ucrânia, mas fracassaram. Perceberam que não podem tomar a capital e se veem em apuros em outras cidades. O que tentam fazer, agora, é capturar Donbass", disse. O estudioso prevê que os soldados russos tentarão controlar Mariupol e utilizar um eventual domínio sobre Donbass como propaganda de vitória. "Será uma tarefa difícil para os russos, pois as forças de resistência ucranianas têm liberado partes dos territórios ocupados."

Peter Zalmayev — diretor da ONG Eurasia Democracy Initiative (em Kiev) — alerta sobre implicações políticas para Putin. "Ele precisará explicar aos seus cidadãos porque Donbass vale as vidas de 15 mil soldados e os custos das sanções financeiras, que têm minado a economia russa", afirmou ao Correio. Além de se mostrar cético com a guinada na estratégia da Rússia, Zalmayev vê um "momento muito perigoso". "Especialistas creem que, em breve, Putin lançará mão de armas não convencionais, como químicas ou nucleares táticas. Acho que a manobra anunciada hoje (ontem) visa ganhar tempo, reagrupar tropas e lamber as feridas."  

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Lei pune "fake news" sobre ações no exterior

 (crédito: Mikhail Klimentyev/AFP)
crédito: Mikhail Klimentyev/AFP

O presidente russo, Vladimir Putin (foto), promulgou uma lei que pune a divulgação de "informações falsas" sobre as ações da Rússia no exterior com até 15 anos de prisão, mais uma medida de controle de informações sobre a ofensiva na Ucrânia. A lei, que entrou em vigor com a assinatura presidencial, contempla "a divulgação pública de informações deliberadamente falsas com a aparência de informações confiáveis" sobre as "atividades dos órgãos estatais russos fora do território russo". A pena é aumentada para 15 anos de prisão se a "informação falsa" tiver "provocado consequências graves".

 

Comparação com os nazistas

por "anulação" da cultura

Putin criticou a "discriminação" contra a cultura russa nos países ocidentais e a comparou à queima de livros na Alemanha e Áustria por parte dos nazistas na década de 1930. "Hoje, estão tentando anular um país que tem mil anos — e estou falando da progressiva discriminação contra tudo o que está relacionado com a Rússia", afirmou. "Tchaikovsky, Shostakovich, Rachmaninoff (compositores russos) são apagados dos cartazes de concertos... escritores russos e seus livros são proibidos", citou.

Papa Francisco condena a "guerra do ódio"

O papa Francisco (foto) condenou a "guerra de ódio" contra os "irmãos ucranianos indefesos", durante uma cerimônia no Vaticano dedicada especialmente à Ucrânia e à Rússia. "Hoje (...) as bombas destroem as casas de muitos dos nossos irmãos ucranianos indefesos", declarou o pontífice, durante cerimônia na Basílica de São Pedro, em Roma, antes de rezar à Virgem Maria por Ucrânia e Rússia. "Esta guerra de ódio (...) provoca em todos medo e preocupação", afirmou, diante de 3.500 pessoas, entre elas o embaixador ucraniano e representantes do corpo diplomático. Como sinal da importância concedida pelo Vaticano à guerra, o texto da oração foi divulgado antecipadamente em 35 idiomas.

Sinal do fracasso russo

 (crédito: Arquivo pessoal )
crédito: Arquivo pessoal

Por Peter Zalmayev

"A explicação mais simples para a nova estratégia do Kremlin é a de que Vladimir Putin não consegue sucesso militar na Ucrânia por ter calculado de forma errada a invasão. Ele desprezou a habilidade dos ucranianos em resistir. Restavam duas opções para o presidente russo: escalar a guerra, com o uso de armas químicas ou nucleares táticas, ou reduzir dramaticamente a operação para algo mais tangível. As tropas russas têm obtido mais êxito no leste do que no sul ou em qualquer outra região da Ucrânia. Em Donbass, Putin tem condições de conquistar uma vitória e de capturar mais territórios."

Diretor da Eurasia Democracy Initiative, ONG para a promoção da democracia e dos direitos humanos no Leste da Europa e no Cáucaso (em Kiev)

Mensagem ao público interno

Por Anton Suslov

"É fato que forças da Ucrânia saíram em contra-ataque em algumas regiões. As tropas russas estão sofrendo derrotas no Norte e, parcialmente, no Leste (perto de Kharkiv) e no Sul (perto de Mykolaiv). No entanto, mantêm bombardeios a Mariupol e a cidades em Donetsk e em Luhansk. A mensagem do Estado-Maior Conjunto russo tem dois objetivos: lembrar sobre o "nobre" objetivo da chamada "operação militar", ante o aumento de queixas dos cidadãos; e preparar os russos para o estreitamento do escopo da operação, causado pela falta de recursos e do fracasso no campo de batalha."

Especialista da Escola de Análise Política (NaUKMA), em Kiev 

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