Assim que o incêndio na boate Fonda Milagros, em Múrcia (sudeste da Espanha), começou, uma equatoriana de 28 anos ligou para os pais. Era uma despedida, em meio a gritos e à respiração ofegante. "Mamãe, eu te amo. Vamos morrer. Mamãe, eu te amo", afirmou a filha. Ao fundo, gritos. "A luz! A luz!", repetia um homem, em desespero. Em outro trecho, alguém implora: "Nos dê luz, nos ilumine".
- 'Foi como se abrissem as portas do inferno': o incêndio que matou quase 100 em casamento no Iraque
- Por 4 votos a 1, STJ mantém a anulação do júri da Boate Kiss
- Familiares temem prescrição do caso da Boate Kiss: "Oportunismo da defesa"
- "Eu pisava sobre mulheres e homens desmaiados", relata sobrevivente
No mesmo horário, às 6h06 deste domingo (1h06 em Brasília), os bombeiros de Múrcia recebiam dezenas de telefonemas com pedidos de socorro. Uma hora depois, as chamas foram debeladas. A tragédia deixou 13 mortos, quatro feridos e 14 desaparecidos, entre espanhóis, equatorianos e nicaraguenses, segundo o jornal El Mundo. Vinte e oito pessoas inalaram fumaça, receberam atendimento e foram liberadas.
Onze dos 13 corpos foram encontrados no piso superior da discoteca e dois estavam sob os escombros, no térreo. Três cadáveres foram identificados por meio das impressões digitais, dez terão que ser submetidos a testes de DNA. As primeiras investigações apontam que um curto circuito no andar superior da Fonda Milagros tera sido a causa do incêndio. "Vimos chamas saindo dos dutos de ar", relatou a jornalistas um dos sobreviventes.
No momento do incêndio, uma festa ocorria no mesmo piso. O nicaraguense Eric Torres celebrava o seu 30º aniversário acompanhado de mais de 20 amigos e familiares. Marta e Sergio, respectivamente mãe e irmão do aniversariante, não conseguiram sair da boate e morreram. Vários convidados de Eric constam da lista de desaparecidos. A tragédia na boate Fonda Milagros é a mais letal da Espanha desde 1990, quando 43 pessoas morreram no boliche Flying, em Zatagoza.
O fogo se espalhou da Fonda Milagros para outras duas boates, a Teatre e a Golden, e não se exclui a possibilidade de mais vítimas serem localizadas nesses estabelecimentos. "Os bombeiros de Múrcia (...) vão continuar trabalhando no prédio nas próximas horas. Não está descartado que, durante estes trabalhos, possa ser encontrado mais algum corpo", informaram os socorristas à noite. Eles esclareceram que não haverá balanço definitivo de vítimas até a conclusão dos trabalhos. Familiares e amigos das vítimas receberam assistência psicológica gratuita no Pavilhão de Esportes da cidade.
Sara (ela não quis ter o sobrenome revelado) contou ao Correio que deixou a Fonda Milagros às 5h. "Tive que sair de lá uma hora antes, graças a Deus. É uma pena muito grande o que ocorreu", lamentou. Ela revelou que amigos sobreviveram à tragédia. "Estão desolados", disse. "A Fonda é uma boate latina, frequentada por pessoas de vários países."
Em nota, a Fonda Milagros expressou condolências aos familiares das vítimas. "Desde o primeiro momento, estamos colaborando com as autoridades competentes, em quem confiamos plenamente para o esclarecimento dos fatos. Nós nos absteremos de realizar manifestações até o fim da investigação", afirma. O prefeito de Múrcia, José Becerra, prometeu punição aos responsáveis. "Caia quem cair, tudo será esclarecido até as últimas consequências", advertiu.
Boate Kiss
Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, o Brasil entrou em choque com uma tragédia semelhante. Um incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), deixou 242 mortos e uma sensação de impunidade — uma década depois, o julgamento foi anulado e novo júri marcado para 26 de fevereiro de 2024. "Ver uma situação dessas é algo que a gente revive e fica muito chocado, porque se repete toda essa situação de incêndio em boates e em casas de festa", desabafou ao Correio o atleta Ezequiel Corte Real, 34 anos, morador de Santa Maria (RS) e sobrevivente do incêndio.
DEPOIMENTO
"Espero justiça, ao contrário do Brasil"
"É uma recordação difícil, complicada. Algo que me chocou bastante e nunca me deixa todos os anos. Ver não apenas as pessoas que partiram, mas os familiares, que ficam. Vi alguns depoimentos, como o da mãe que recebeu a mensagem do filho se despedindo. Os familiares que foram até a porta da boate em busca de notícias dos filhos. Isso é muito doloroso. É preciso que esses estabelecimentos tenham regulamentos novos e que haja justiça, não é? Assim como aqui no Brasil, lá na Espanha eles não tinham uma estrutura favorável na boate. A gente tem que rever isso no mundo inteiro.
Sobre a impunidade, espero que, diferentemente do Brasil, alguém seja indiciado e considerado culpado por toda essa situação. Esses familiares ficarão muito tempo sofrendo. Com certeza eram pessoas jovens e que tinham toda a vida pela frente. É doloroso. Na minha cidade, as pessoas sentem até hoje. Pouco tempo atrás, a gente estava comentando que Santa Maria nunca mais foi a mesma. Imagino que muitas famílias nunca mais serão as mesmas. Daquela noite de 27 de janeiro de 2013, eu me lembro dos telefones tocando dentro da boate Kiss. Eu entrava para resgatar as pessoas e via vários telefones no chão tocando.Assim como via corpos do lado de fora, jogados, com os celulares tocando."
Ezequiel Corte Real, 34 anos, atleta, morador de Santa Maria (RS), sobrevivente do incêndio na boate Kiss, em 27 de janeiro de 2013
Saiba Mais
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br