DOAÇÃO DE ÓRGÃOS

'Doar rim a estranho mudou completamente minha vida'

Um número reduzido de pessoas no Reino Unido doou um rim a um desconhecido. Laura Maisey é uma dessas pessoas e nesta reportagem conta por que fez isso.

Laura Maisey entrou em um hospital e perguntou à recepcionista se eles queriam um de seus rins -  (crédito: STUART WOODWARD/BBC)
Laura Maisey entrou em um hospital e perguntou à recepcionista se eles queriam um de seus rins - (crédito: STUART WOODWARD/BBC)
BBC
Charlie Jones - BBC
postado em 02/01/2024 06:45 / atualizado em 02/01/2024 08:53

Todos os anos, um pequeno número de pessoas decide doar um rim a um estranho no Reino Unido.

Em 2022, cerca de mil britânicos doaram um rim a um familiar ou a um amigo, enquanto apenas 83 deram um desses órgãos, que são responsáveis por filtrar o sangue, a alguém que não conheciam.

A professora Laura Maisey, de 38 anos, é uma dessas chamadas doadoras altruístas.

A seguir, ela mesma explica por que doar um dos rins representou uma grande mudança de vida.

'Queria saber se vocês querem um dos meus rins'

Comecei a pensar em como poderia ajudar outras pessoas quando corri de Roma, na Itália, a Londres, na Inglaterra, em setembro de 2016. Durante essa viagem, que durou 73 dias, recebi muita gentileza de estranhos e quis retribui-la.

Alice, uma amiga que também é corredora, me contou que iria doar um rim a um estranho no ano seguinte. Você pode sobreviver com apenas um órgão desses, então ela não viu motivo para não doar o outro. E isso fez total sentido para mim.

As pessoas ficavam dizendo que era uma loucura eu fazer isso, ou que o procedimento era muito perigoso e que ficariam com muito medo de fazê-lo.

Percebi que a cabeça de algumas pessoas não funciona como a minha, então poucos deveriam estar realizando a doação altruísta — o que me deixou mais determinada a ajudar.

No entanto, precisei me mudar para a Itália por 18 meses e deixei a ideia de lado. Pouco antes de voltar ao Reino Unido, os rins de uma prima minha que tem diabetes começaram a falhar.

Não pude ajudá-la, porque ela precisava de um rim e de um pâncreas vindos de um doador falecido.

Sabia que gostaria de melhorar a vida de alguém — como minha própria prima, que fez um transplante com sucesso. Queria agradecer ao mundo por isso.

Após voltar a morar no Reino Unido, tive um compromisso em Londres e estava perto do Hospital Guy's and St Thomas, onde minha amiga Alice havia doado seu rim há muito tempo.

Entrei e fui direto para o departamento de nefrologia. Ali, disse à recepcionista: "Queria saber se vocês gostariam de um dos meus rins."

Três meses e muitos testes depois, fui aprovada para realizar a doação. Sou vegana, quase não bebo e sou bastante ativa, então tinha certeza de que meu pequeno rim poderia prestar um bom serviço para outra pessoa.

Mas a covid-19 se espalhou pelo mundo e arruinou meus planos.

Todas as cirurgias eletivas foram canceladas. Esperei até setembro de 2020, entrei em contato com o hospital e, felizmente, o programa de doação de rins recomeçou.

'Nunca fiquei tão feliz em saber que um estranho fez xixi'

Alguns meses depois, recebi um telefonema informando que um paciente compatível havia sido encontrado. Minha operação seria em janeiro.

Posso dizer com toda a honestidade que fiquei muito animada.

Tive uma única dúvida quando me disseram que eu teria que me isolar com meu parceiro no dia de Natal, para ter certeza de que não pegaria covid-19.

Meu pai me mandou uma mensagem na noite anterior à cirurgia para dizer que estava com medo e não queria que me submetesse ao procedimento.

Mas eu estava decidida. É estranho ir ao hospital para os médicos te deixarem intencionalmente doente — mas eu mal podia esperar por isso.

A fatídica manhã chegou, e os cirurgiões vieram ao meu quarto para verificar se eu ainda estava aberta à doação. Foi o "sim" mais certo que já disse na minha vida.

No caminho para a sala de operações, eu estava muito agitada. O rim deixou fisicamente meu corpo ao meio-dia e iniciou uma jornada até o novo destinatário.

Me informaram na manhã seguinte que meu rim havia sido transplantado com sucesso, o receptor estava urinando perfeitamente e todas as taxas que representam uma boa função renal estavam como deveriam.

Nunca fiquei tão feliz em saber que um estranho fez xixi!

Fiquei três dias no hospital, fiz repouso em casa mais um dia e depois voltei à vida normal.

Sei que algumas pessoas têm uma recuperação mais longa, mas me senti bem de novo com rapidez.

Um mês depois, o hospital recebeu um e-mail de Stuart, a pessoa que recebeu meu rim. "Oi, sou o cara que pegou seu rim", dizia a mensagem.

Antes da cirurgia, fui orientada a não entrar em contato com o receptor. Então, não esperava receber notícias, mas fiquei muito feliz por ele estar bem.

Trocamos correspondências e nos conhecemos. Fiquei fascinada em saber tudo sobre a vida dele. Meu marido e eu fomos encontrá-lo em Folkestone, no Reino Unido, onde ele mora com a esposa. Fomos nadar no mar e beber champanhe. Nos demos tão bem, foi realmente incrível.

Teria ficado feliz se qualquer pessoa recebesse meu rim. Mas a cereja do bolo foi que o órgão acabou com uma pessoa muito legal — e agora somos bons amigos.

Em outubro, corri uma maratona em York. Stuart, que recebeu meu rim, veio me apoiar e conheceu meu pai, que agora entende perfeitamente por que decidi fazer a doação.

Essa é, sem dúvida, a melhor coisa que já aconteceu comigo, e posso dizer minha decisão mudou minha vida.

Poucas vezes temos a chance de fazer uma diferença real na vida de alguém. Em algum momento, não vou existir mais.

Para mim, é importante que deixe algo de bom no mundo.

Stuart, que recebeu o rim de Laura, relata:

Tinha 43 anos quando recebi o rim de Laura. Eu sabia que precisaria de um transplante desde os 20 anos, quando fui diagnosticado com doença renal policística (doença que causa formação de cistos renais, com aumento gradual de ambos os rins, às vezes, com progressão para insuficiência renal). Estava gravemente doente antes da operação, prestes a necessitar de diálise.

Minha função renal agora está muito boa — o que é realmente incrível, porque sou um homem grande e Laura é muito franzina. Então, o rim dela precisa trabalhar muito.

Laura teve que beber muita água antes da operação, então me deram esse rim cheio de água. É uma loucura pensar que urinei parte do que ela bebeu!

Sabia desde o início que precisava escrever para a Laura, mas tive dificuldade em decidir o que dizer. O que Laura fez por mim foi a coisa mais incrível e linda. Não há palavras para resumir o quanto estou grato a ela.

Laura é um grande ser humano. Ela não queria que eu agradecesse e disse que apenas retribuía ao universo.

Temos esse vínculo para a vida toda agora — e tenho sorte de tê-la como amiga.

E no Brasil?

O Ministério da Saúde aponta que, de janeiro a dezembro de 2023, o Brasil registrou 6.011 transplantes de rim — o órgão é o mais demandado na fila de transplantes, com mais de 38 mil pacientes na lista de espera.

A legislação brasileira não prevê a doação altruísta. Geralmente, os órgãos usados em transplantes vêm de doadores mortos.

No caso do transplante de rim, há a possibilidade de doar em vida, desde que a retirada do órgão não represente um risco à saúde do doador.

Mas é mais comum que essa doação em vida venha de cônjuges ou familiares de até quarto grau. Quando a doação envolve alguém fora da família, é necessário autorização judicial para realizar o procedimento no Brasil.

Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

-->