DENÚNCIA

Bolsonaro e Carlos definiam alvos e estratégias da 'Abin paralela', diz PF

PGR agora terá que decidir se formaliza denúncia contra acusados

Bolsonaro e Carlos definiam alvos e estratégias da 'Abin paralela', diz PF -  (crédito: BBC Geral)
Bolsonaro e Carlos definiam alvos e estratégias da 'Abin paralela', diz PF - (crédito: BBC Geral)

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seu filho Carlos Bolsonaro (PL), vereador no Rio de Janeiro, seriam os responsáveis por definir as estratégias e alvos de ações clandestinas da chamada "Abin paralela", segundo relatório final de um inquérito da a Polícia Federal.

A investigação apurou como a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) teria sido usada de forma ilegal para espionar adversários da família Bolsonaro e disseminar informações falsas sobre o sistema eleitoral durante o governo anterior.

As conclusões da apuração foram tornadas públicas nesta quarta-feira (18/6) por decisão do ministro Alexandre de Moraes.

Segundo o relatório, o núcleo o político da organização criminosa era "composto por figuras de alto escalão do governo à época, incluindo potencialmente o então Presidente da República JAIR MESSIAS BOLSONARO e seu filho, Vereador CARLOS NANTES BOLSONARO".

"Este núcleo foi o responsável por definir as diretrizes estratégicas da ORCRIM [organização criminosa], determinar os alvos das ações clandestinas (opositores, instituições, sistema eleitoral) e se beneficiar politicamente das operações. Era o centro decisório e o principal destinatário das 'vantagens' ilícitas (manutenção no poder, ataque a adversários)", diz ainda o documento.

Com 1.125 páginas, o relatório detalha como a Abin teria sido usada em ações para descredibilizar o sistema eletrônico de votação, campanha que faria parte de uma tentativa de questionar eventual derrota de Bolsonaro na eleição de 2022, com objetivo de anular a eleição e mantê-lo no poder.

A PF também aborda no documento como a agência teria sido empregada na defesa de interesses da então família presidencial. Um desses episódios envolveria investidas contra a Receita Federal, na tentativa de provar que servidores do órgão teriam produzido de forma irregular relatórios fiscais sobre o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).

Esses relatórios foram usados em uma investigação sobre suposto esquema de rachadinha [desvio de recurso público] no antigo gabinete de deputado estadual de Flávio Bolsonaro. O filho do presidente chegou a ser denunciado criminalmente, mas depois a tramitação do caso foi interrompida por decisões do STF e do Superior Tribunal de Justiça.

Ao concluir a investigação, a PF pediu o indiciamento de mais de 30 pessoas, incluindo Carlos Bolsonaro e do ex-diretor da Abin e hoje deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ). Agora, caberá à Procuradoria-Geral da República (PGR) se denúncia criminalmente os indiciados.

Na terça-feira (17/6), a BBC News Brasil publicou, com base em informações de outros veículos, que Jair Bolsonaro também estaria entre os indiciados pela PF nesse caso. No início da noite, no entanto, o portal Uol publicou que a informação não era verdadeira.

Segundo relatório revelado nesta quinta-feira (18/6), a PF entendeu que Bolsonaro, ao supostamente comandar a Abin paralela, teria cometido os delitos de Organização Criminosa Armada e Tentativa de Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito.

No entanto, como o ex-presidente já está sendo processado por esses dois crimes em uma ação penal sobre uma suposta tentativa de golpe de Estado, a Polícia Federal optou por não o indiciar novamente.

"Considerando que já existe ação penal em curso, deixo de indiciar o investigado JAIR BOLSONARO, consignando a conduta caso haja outro entendimento", diz o relatório, deixando à PGR a decisão de denunciar ou não novamente Bolsonaro pelos dois crimes.

O mesmo critério foi aplicado a outros investigados. No caso de Ramagem, a PF decidiu não indiciá-lo pelos delitos de Organização Criminosa Armada e Tentativa de Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito, porque ele também é réu por esses crimes no mesmo processo de Bolsonaro.

Ramagem, porém, foi indiciado por outras supostas ilegalidades, como interceptações sem autorização judicial e peculato (desvio de bens ou recursos públicos), por ter supostamente usado a estrutura da Abin para fins particulares.

Segundo a investigação, ele teria sido responsável, quando ainda diretor-geral da Abin, por estruturar o esquema de espionagem ilegal.

Já Carlos Bolsonaro, que não é réu no processo sobre golpe de Estado, foi indiciado no caso da Abin Paralela por Organização Criminosa Armada.

Para a PF, ele teria usado as informações obtidas pela agência de inteligência para alimentar uma rede de perfis em redes sociais com ataques a adversários do governo.

Bolsonaro e Ramagem têm negado a existência de estruturas paralelas na agência e a participação em espionagens ilegais.

Carlos Bolsonaro, por sua vez, comentou o indiciamento em postagem na rede social X (antigo Twitter): "Alguém tinha alguma dúvida que a PF do Lula faria isso comigo? Justificativa? Creio que os senhores já sabem: eleições em 2026? Acho que não! É só coincidência!", escreveu o vereador.

Em nota à imprensa divulgada em janeiro sobre o caso, a Abin disse que é a principal interessada na elucidação dos casos envolvendo a agência.

"A atual gestão da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) vem colaborando com inquéritos da Polícia Federal e do Supremo Tribunal Federal sobre eventuais irregularidades cometidas no período de uso de ferramenta de geolocalização, de 2019 a 2021. A Abin é a maior interessada na apuração rigorosa dos fatos e continuará colaborando com as investigações", dizia a nota.

Indiciados incluem cúpula da Abin no governo Lula

No total, mais de 30 pessoas foram indiciadas no caso da "Abin paralela".

Entre eles estão autoridades que integram a atual gestão da agência, como os delegados Luiz Fernando Corrêa, diretor-geral da Abin, o chefe de gabinete Luiz Carlos Nóbrega e o corregedor-geral José Fernando Chuy.

Todos eles são delegados de carreira da Polícia Federal nomeados ao cargo no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Corrêa, por exemplo, é suspeito de ter atuado para atrapalhar as investigações sobre a Abin Paralela.

Ele também é suspeito de ter autorizado uma ação hacker da agência contra autoridades do governo do Paraguai, com objetivo de levantar informações sobre a negociação da venda da energia pela usina de Itaipu, que é dividida entre Brasil e Paraguai, mas esse tema não aparece no relatório da PF.

O indiciamento é quando a polícia formaliza, em um inquérito, que há indícios suficientes de que alguém foi autor de um crime para que a pessoa seja denunciada criminalmente.

Agora caberá à Procuradoria-Geral da República (PGR), comandada por Paulo Gonet, avaliar as provas apresentadas e decidir se formaliza uma denúncia contra os acusados.

Havendo denúncia por parte da PGR, caberia ao Supremo Tribunal Federal (STF) decidir se prossegue com uma ação.

Entenda melhor suposto papel de Ramagem

Segundo as investigações, Ramagem seria um dos integrantes do chamado "núcleo alta gestão e comando" da "Abin paralela". O termo "alta gestão" remete aos integrantes da alta cúpula da Abin.

Ramagem foi diretor da agência entre 2019 e 2022 — assim como outros investigados, ele pertence aos quadros da PF. O deputado federal nega ter cometido qualquer irregularidade durante sua passagem pelo órgão de inteligência.

As suspeitas são de que Ramagem tenha participado de uma organização criminosa dentro da Abin para monitorar adversários da família Bolsonaro e proteger filhos do então presidente de investigações.

Segundo a PF, durante sua gestão, a agentes a serviço da Abin teriam feito monitoramentos de forma ilegal.

De acordo com trechos da representação feita pela Polícia Federal e pela PGR ao STF, um dos elementos que apontam Ramagem como integrante do esquema é o fato de ele ter recebido pedidos de informação feitos por uma assessora parlamentar de Carlos Bolsonaro sobre uma delegada que conduzia inquéritos sobre a família Bolsonaro.

Outro elemento apontado nas investigações é o fato de Ramagem ter feito uma impressão com uma lista de inquéritos eleitorais sigilosos em 2020.

O documento, segundo a PF, "possivelmente" seria entregue aos integrantes do chamado "núcleo político" da organização.

Ramagem é forte aliado da família Bolsonaro, e disputou em 2024 a eleição para prefeito do Rio de Janeiro, berço político do ex-presidente, tendo sido derrotado por Eduardo Paes (PSD) em primeiro turno.

Ele se tornou próximo do clã político na campanha de 2018, quando foi destacado pela PF para coordenar a segurança do então candidato após ele ter sido alvo de uma facada em setembro daquele ano.

Monitoramento de autoridades

Segundo a Polícia Federal, a estrutura paralela produziu dossiês de forma ilegal e atuou para disseminar notícias falsas sobre integrantes da cúpula do Judiciário e do Legislativo, além de um ex-presidenciável, servidores públicos e jornalistas.

Também monitorou os passos de cidadãos de forma clandestina, incluindo jornalistas, além de autoridades da cúpula dos três poderes.

Toda essa estrutura, segundo os investigadores, teria funcionado sob a gestão de Ramagem por ordem de Bolsonaro.

Por meio da ferramenta de espionagem, os dados eram coletados de celulares e antenas para conseguir identificar o último local conhecido da pessoa que portava o aparelho.

O inquérito aponta ações contra o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso e o ministros Alexandre de Moraes; o então presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o ex-chefe da Casa Rodrigo Maia; e o ex-governador de São Paulo João Doria, que foi pré-candidato à Presidência, entre outros alvos.

Para que serve a Abin

A Abin foi criada em 1999, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.

Ela preencheu um vácuo deixado pela extinção do Serviço Nacional de Informação (SNI), em 1990.

Fundado em 1964, logo após o golpe militar, o SNI colhia informações que orientaram a repressão da ditadura a militantes de esquerda.

Também entraram na mira do SNI partidos políticos, sindicatos e setores da Igreja Católica.

Após a redemocratização, em 1985, houve pressões para que o SNI fosse extinto, o que só ocorreu em 1990, no governo de Fernando Collor.

A Abin é um órgão da Presidência da República, atualmente vinculado à Casa Civil, com orçamento para 2024 em cerca de R$ 833,4 milhões.

A missão da Abin é ser "responsável por fornecer ao presidente da República e a seus ministros informações e análises estratégicas, oportunas e confiáveis, necessárias ao processo de decisão", conforme diz a agência em seu site oficial.

A Abin deve ainda "assegurar que o Executivo federal tenha acesso a conhecimentos relativos à segurança do Estado e da sociedade, como os que envolvem defesa externa, relações exteriores, segurança interna, desenvolvimento socioeconômico e desenvolvimento científico-tecnológico".

A agência diz colher informações relacionadas à proteção das fronteiras nacionais, à segurança de infraestruturas críticas, à contraespionagem, ao terrorismo e à proliferação de armas de destruição de massa, entre outros temas.

Desde sua criação, a Abin já passou por diferentes pastas, num reflexo da disputa entre civis e militares pelo seu controle. Nos seus primeiros 16 anos de existência, ela esteve subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI), órgão que costuma ser gerido por militares.

Em 2015, no entanto, a então presidente Dilma Rousseff (PT) extinguiu o GSI e transferiu a Abin para o controle civil, subordinando a entidade à Secretaria de Governo.

A medida foi desfeita pelo sucessor de Dilma, Michel Temer (MDB), que recriou o GSI e devolveu a Abin ao órgão. A agência então voltou a ser subordinada a um órgão comandado por militares e manteve esse status durante o governo Jair Bolsonaro (PL).

Até que, em maio de 2023, em nova reviravolta, o presidente Lula transferiu a Abin para a Casa Civil. Meses depois, Lula publicou dois decretos alterando o funcionamento da agência e do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin).

Desde a fundação da Abin, houve várias ocasiões em que seus agentes foram acusados de agir com fins políticos.

Numa dessas ocasiões, em 2002, houve denúncias de que agentes da Abin teriam participado de investigações que culminaram na operação de apreensão de documentos e dinheiro vivo na empresa Lunus, de propriedade da ex-governadora do Maranhão e então pré-candidata do PFL (atual Democratas) à Presidência da República, Roseana Sarney.

Em meio à repercussão do caso, Roseana desistiu de concorrer à Presidência.

Em 2008, foi revelado pela revista Veja que a agência tinha grampeado autoridades como o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e o então senador Demóstenes Torres, do Democratas.

Além deles, diversos outros parlamentares teriam sido grampeados.

O diretor-geral da Abin à época, Paulo Lacerda, foi afastado do cargo — de início, temporariamente, e depois de forma definitiva.

Lacerda defendeu a agência, afirmou que a imprensa acusava "sem provas" e que não havia envolvimento da Abin em grampos ilegais.

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postado em 19/06/2025 11:40 / atualizado em 19/06/2025 15:10
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