FÉ E SUCESSÃO

Como é o ritual complexo dos budistas tibetanos para encontrar sucessor do Dalai Lama?

O líder espiritual do Tibete é considerado a reencarnação do líder anterior. Seu reconhecimento na infância não é um processo fácil e ainda é agravado pelas tensões políticas da região.

O Dalai Lama é o líder espiritual do budismo tibetano, reconhecido como a reencarnação de uma longa linha de mestres que renascem para orientar as pessoas rumo à iluminação -  (crédito: Getty Images)
O Dalai Lama é o líder espiritual do budismo tibetano, reconhecido como a reencarnação de uma longa linha de mestres que renascem para orientar as pessoas rumo à iluminação - (crédito: Getty Images)

"A instituição do Dalai Lama será mantida."

Com esta declaração feita no exílio, o 14º Dalai Lama, Tenzin Gyatso, confirmou que seu sucessor será eleito de acordo com a tradição do budismo tibetano.

O líder espiritual completa 90 anos no domingo (06/07). Ele afirma que goza de boa saúde.

Sua declaração pôs fim aos rumores que indicavam o fim da instituição após a sua morte. Mas eleger seu sucessor não será uma tarefa fácil.

O 15º Dalai Lama deverá ser a reencarnação do líder espiritual tibetano exilado desde 1959, na cidade de Dharamsala, no norte da Índia.

Diferentemente de outras religiões, a liderança espiritual tibetana não é herdada, nem eleita por votação.

O Dalai Lama é considerado a reencarnação do Bodhisattva da Compaixão, uma figura divina que costuma regressar ao mundo periodicamente, para aliviar o sofrimento dos seres vivos.

O 14º Dalai Lama, sentado com as mãos postas
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O Dalai Lama é o líder espiritual do budismo tibetano, reconhecido como a reencarnação de uma longa linha de mestres que renascem para orientar as pessoas rumo à iluminação

O processo de sucessão envolve a busca de um menino que, depois de uma série de sinais místicos e provas, seja reconhecido como sua continuação espiritual.

E a próxima sucessão será marcada por uma tensão geopolítica sem precedentes.

O ritual

Segundo sua biografia oficial, o atual Dalai Lama foi descoberto quando tinha apenas dois anos de idade. Ele reconheceu objetos pessoais do seu predecessor, afirmando "é meu, é meu".

Este reconhecimento espontâneo foi um dos principais indícios que levaram os monges que o visitaram a concluir que Lhamo Thondup – como se chamava, na época, aquele menino nascido em uma aldeia remota no nordeste do Tibete – era a 14ª reencarnação do Dalai Lama.

Até chegar àquele ponto, o caminho foi orientado por sinais místicos, visões e rituais, que fazem parte do complexo processo de sucessão.

O 14º Dalai Lama jovem
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Tenzin Gyatso nasceu em 1935 e recebeu o nome de Lhamo Thondup. Ele foi reconhecido quando criança como a reencarnação do Dalai Lama

Tudo começa após a morte do Dalai Lama, quando os altos lamas (autoridades espirituais do budismo) entram em um período de luto e contemplação.

Nesse período, eles observam sinais que possam servir de indícios sobre o local onde teria renascido o seu líder espiritual.

Uma das práticas mais conhecidas é a consulta ao lago sagrado Lhamo Latso, no sul do Tibete. Ali, o regente em exercício ou um monge de alto escalão observa a superfície da água, em busca de visões reveladoras.

No caso de Lhamo Thondup, o então regente observou três letras tibetanas e uma imagem que mostrava um monastério com teto azul-turquesa, uma colina e uma casa com canaletas incomuns.

Tudo isso conduziu os monges ao monastério de Kumbum e, posteriormente, à aldeia de Taktser, onde morava o menino.

Quando a região provável é localizada, os monges percorrem cidades e aldeias, em busca de meninos nascidos pouco depois da morte do Dalai Lama anterior.

Durante essa busca, os monges ficam atentos a fatos extraordinários, sonhos proféticos, comportamentos incomuns e coincidências de nascimento.

Os possíveis candidatos são submetidos a provas. Eles devem, por exemplo, reconhecer pertences do Dalai Lama anterior entre um grupo de objetos similares.

O menino só é considerado a reencarnação do antigo líder se passar pelas provas e se os sinais místicos coincidirem.

Uma vez reconhecido, o menino é levado para um monastério. Ali, começa sua formação espiritual e filosófica que irá durar vários anos, culminando com a cerimônia de entronização como o novo Dalai Lama.

Esta cerimônia ocorre tradicionalmente no histórico templo de Potala, na cidade sagrada de Lhasa, no Tibete. Ela marca o reconhecimento oficial do menino como o novo líder espiritual tibetano.

O palácio de Potala, em Lhasa (Tibete)
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Localizado em Lhasa, a capital do Tibete, o palácio de Potala foi a residência do Dalai Lama por séculos, até pouco depois da invasão chinesa de 1950

Durante este ritual, o menor, já vestido com as túnicas monásticas, é levado ao trono e recebe um novo nome religioso. O ato inclui orações, cânticos e oferendas, com a participação de altos lamas, monges e autoridades religiosas.

Posteriormente, o menino é levado para o templo Jokhang. Lá, ele é ordenado monge noviço, em uma cerimônia conhecida como taphue, que inclui o corte de cabelo, como símbolo da renúncia à vida mundana.

O budismo tibetano e a China

A República Popular da China ocupou o Tibete em 1950.

Em 1959, após o fracasso de uma revolta contra o domínio chinês, o Dalai Lama cruzou a cordilheira do Himalaia, disfarçado de soldado, com a escolta de um pequeno grupo de fiéis.

O líder espiritual, então com 23 anos de idade, se exilou na Índia.

As autoridades indianas o acolheram e ele se instalou na localidade de Dharamsala. Ali, o Dalai Lama estabeleceu a sede do governo tibetano no exílio e reconstruiu sua comunidade política e religiosa.

Desde então, a China considera o Dalai Lama "separatista". Pequim proibiu a exibição da sua imagem no Tibete e combateu todas as demonstrações públicas de culto ao líder tibetano.

O Dalai Lama e seus seguidores a caminho do exílio na Índia, em 1959
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O Dalai Lama e seus seguidores enfrentaram um árduo caminho para o exílio na Índia, em 1959

Já o Dalai Lama rejeita insistentemente o controle chinês sobre o Tibete e sua religião. Por isso, o tema da sucessão é uma importante fonte de conflito entre as autoridades comunistas chinesas e a hierarquia budista tibetana.

No livro A Voz de Uma Nação (Ed. HarperCollins Brasil, 2025), publicado em março, o Dalai Lama prevê que sua reencarnação não irá nascer em território controlado pela China, mas sim "no mundo livre".

A tarefa de identificar e localizar o menino que supostamente será sua reencarnação ficaria nas mãos da Fundação Gaden Phodrang, criada pelo próprio Dalai Lama em 2011, para coordenar seu trabalho espiritual e humanitário.

Mas a China defende que o governo central deve aprovar a seleção do futuro Dalai Lama, retirando o nome de um dos candidatos de uma urna dourada. Este método foi introduzido pelos imperadores chineses da dinastia Qing, no século 18.

Pequim alega que este procedimento possui precedentes históricos e que a continuidade do budismo tibetano deve ser ajustada à soberania nacional.

De qualquer forma, a maioria dos budistas tibetanos observa com ceticismo a interferência chinesa, especialmente considerando o precedente do Panchen Lama.

Em 1995, o Dalai Lama reconheceu publicamente um menino de seis anos como a reencarnação do Panchen Lama, a segunda figura mais importante do budismo tibetano. Dias depois, o menino e sua família foram detidos pelas autoridades chinesas e nunca mais se soube deles.

Em seu lugar, Pequim impôs seu próprio Panchen Lama, considerado ilegítimo por grande parte da comunidade budista tibetana.

Cartaz pedindo a libertação do Panchen Lama tibetano
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Autoridades chinesas detiveram o menino declarado como reencarnação do Panchen Lama tibetano. Desde então, ele e sua família nunca mais foram vistos

Por isso, após a morte do atual líder espiritual, poderão surgir dois Dalai Lamas, um reconhecido pela Fundação Gaden Phodrang e outro indicado pelas autoridades chinesas no Tibete. E o próprio Dalai Lama já considerou este cenário.

"No futuro, se for observado o surgimento de dois Dalai Lamas, um daqui, em um país livre, e outro escolhido pela China, ninguém respeitará o segundo", declarou ele em entrevista, em 2019.

Seus comentários antecipam o dilema em torno da sua sucessão, que poderia marcar uma intensa disputa, que colocaria em jogo a religião, a identidade e a política.

E a China e os tibetanos no exílio não seriam as únicas partes implicadas.

O Panchen Lama indicado por Pequim participa de um evento político do partido único da China
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O Panchen Lama indicado por Pequim participa de eventos políticos do Partido Comunista Chinês

Índia e Estados Unidos

Atualmente, a Índia acolhe, além do Dalai Lama, mais de 100 mil tibetanos no exílio. O país atribui alto valor estratégico à presença do líder espiritual em Dharamsala.

O Dalai Lama manteve fortes relações com todos os primeiros-ministros indianos, desde a independência do país. Sua figura serve de recurso diplomático ante o avanço da China na região.

Especialistas acreditam que a Índia se oporia à imposição de um Dalai Lama que servisse aos interesses chineses e fosse utilizado como ferramenta de propaganda ou controle territorial no Himalaia, que é o cenário de atritos frequentes entre as duas potências asiáticas.

O Dalai Lama fala aos seus seguidores na Índia, em 1959
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O Dalai Lama fala aos seus seguidores na Índia, em 1959

Os Estados Unidos também demonstraram certo interesse pelo futuro da instituição.

Em 2020, o Congresso americano aprovou a Lei de Política e Apoio ao Tibete. Ela apoia explicitamente o direito do Dalai Lama a determinar o processo de reconhecimento da sua própria reencarnação e define sanções a funcionários chineses que interferirem no processo.

BBC
Redação - BBC News Mundo
postado em 04/07/2025 07:38 / atualizado em 04/07/2025 09:51
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