
Há mais de 200 anos, na cidade francesa de Lyon, nascia Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869).
Décadas depois, ele ficaria mais conhecido por seu pseudônimo, Allan Kardec, e fundaria o espiritismo.
Provavelmente nem Kardec nem seus contemporâneos poderiam imaginar que, no século 20, a religião floresceria fortemente não na França, mas do outro lado do Oceano Atlântico — no Brasil.
"Embora a França seja o berço do Allan Kardec, o francês médio não sabe que o que é espiritismo", resume o palestrante e escritor espírita Ricardo Ribeiro Alves, em entrevista à BBC News Brasil.
Especialistas dizem que é difícil precisar quantos espíritas existem no mundo, mas parece consenso a constatação de que o Brasil se tornou o país onde o espiritismo mais "deu certo".
Segundo o filósofo e antropólogo Bernardo Lewgoy, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), poucos países registram essa corrente religiosa em seus censos e algumas estimativas incluem simpatizantes e frequentadores ocasionais.
O Conselho Espírita Internacional opta por consolidar estimativas fornecidas pelas federações de cada país. O dado mais recente afirma que há 13 milhões de adeptos do espiritismo no mundo.
Já o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registra o número de espiritas no Brasil desde 1940.
Dados do Censo mais recente, de 2022, constataram que 3,18 milhões de brasileiros seguem o espiritismo — 1,8% da população. A contagem considera pessoas com mais de 10 anos.
Apesar dos números relevantes, a fatia ocupada pelos espíritas no Censo diminuiu em relação ao levantamento de 2010, quando eles representavam 2,2% da população brasileira — e um total absoluto de 3,56 milhões de adeptos.
Entretanto, segundo a Federação Espírita Brasileira, há 30 milhões de brasileiros que simpatizam com a doutrina espírita, mas declaram ter outras religiões.
Embora o cenário recente seja de queda no número de espíritas contabilizados no Brasil, por que o espiritismo deu tão certo aqui e nem tanto em outros países, inclusive na França? E o que explica a considerável queda na última década no Brasil?
Da hostilidade católica à popularização no Brasil
O pedagogo, professor e tradutor Hippolyte Léon Denizard Rivail inicialmente reagiu com ceticismo às "mesas girantes", encontros mediúnicos que eram moda na França daquele tempo.
Mas, curioso, ele passou a frequentar tais reuniões — e começou a se convencer de os espíritos realmente estavam se comunicando ali.
Em 1857, ele lançou O Livro dos Espíritos, obra que fundamentou as bases do espiritismo. Kardec, no entanto, não acreditava ter criado uma religião, e sim "codificado" a obra dos espíritos através de um método científico.
Ele colocava perguntas sistemáticas aos espíritos e a compilava o que seria essa comunicação. Portanto, colocou no papel observações sobre acontecimentos que já aconteciam antes, como sessões com médiuns e relatos de manifestações de espíritos.
Em sua obra, o francês aglutinou os valores da religiosidade cristã, da ciência e da filosofia daquela Europa do século 19.
No Brasil, o espiritismo teve como marco de chegada 17 de setembro de 1865, há 160 anos.
Naquele dia, ocorreu a primeira sessão espírita no Brasil, em Salvador, liderada pelo jornalista Luís Olimpio Teles de Menezes (1828-1893).
De acordo com Lewgoy, o frisson inicial ocorreu entre integrantes da elite urbana letrada, principalmente "católicos não dogmáticos".
"Nesse período, o espiritismo era visto pela Igreja [Católica] mais como uma filosofia ameaçadora do que como um concorrente religioso", afirma Lewgoy, autor do livro O Grande Mediador: Chico Xavier e a Cultura Brasileira.
Mas havia hostilidades por parte da dominante Igreja Católica: mesmo de base cristã, os espíritas acreditam em reencarnação e em comunicação com os mortos — crenças que vão de encontro ao catolicismo.
Em um primeiro momento, os dogmáticos católicos aproximaram os kardecistas dos praticantes de religiões africanas — que eram profundamente estigmatizados no século 19.
No entanto, algumas características da prática espírita no Brasil facilitaram sua aceitação, como seu contorno supostamente científico e os privilégios educacionais e sociais da elite branca que predominou entre seus primeiros seguidores.
Nas cinco décadas seguintes à sua chegada, o espiritismo passou a ser reconhecido pela população mais ampla — mais uma vantagem em um ambiente jurídico hostil, ainda dominado pelo catolicismo, de acordo com Lewgoy.
O espiritismo consolidou suas raízes no Brasil com a criação de instituições, a prática de oferecer assistência social e a popularização de livros escritos por médiuns (termo criado por Kardec para designar os "intermediários" entre os vivos e os mortos).
E aí, veio o boom, o crescimento acelerado. Para Lewgoy, isso ocorreu entre 1970 e 2010.
A primeira amostragem do Censo a identificar espíritas registrou 460 mil adeptos em 1940 — saltando para 3,8 milhões em 2010. Foi um avanço de mais de 720%. A população brasileira aumentou nesse período também, mas em menor escala, de 360%.
"Houve uma penetração nas classes médias urbanas, uma sincretização com religiosidades populares e uma concorrência direta com o catolicismo em declínio. A estratégia foi ocupar o vácuo deixado pelos católicos, oferecendo uma forma de modernidade religiosa para as classes médias em ascensão", avalia o antropólogo.
De acordo com ele, com o avanço da urbanização no país, funcionários públicos, professores, militares e profissionais liberais das classes nas cidades encontraram no espiritismo uma "religiosidade ao mesmo tempo 'moderna' e 'respeitável', distinta do catolicismo oficial mas não revolucionária socialmente".
Além disso, o espiritismo foi visto como uma alternativa "racional" e "científica" aos dogmas católicos tradicionais, acrescenta ele.
"O espiritismo brasileiro conseguiu conciliar elementos aparentemente contraditórios: ciência e religião, tradição e modernidade, nacionalismo e universalismo, erudição e popularização. Essa plasticidade foi decisiva para seu enraizamento", aponta Lewgoy.
Autora do livro Afinal, Espiritismo é Religião?, a historiadora e socióloga Célia da Graça Arribas, professora na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), lembra que há até termos que brincam com a adaptação bem-sucedida do espiritismo a um país predominantemente católico, como a existência de pessoas "espiritólicas" ou "catoespíritas".
Ela destaca ainda a mistura do espiritismo com crenças afrobrasileiras, sobretudo a umbanda, e o surgimento de líderes espíritas que contribuíram para "popularizar e tornar nacional a doutrina".
Médiuns famosos como Chico Xavier (1910-2002), Bezerra de Menezes (1831-1900) e Divaldo Franco (1927-2025) conseguiram de certa forma "abrasileirar" o espiritismo.
O palestrante e escritor espírita Ricardo Ribeiro Alves também destaca o sincretismo religioso presente no país e como o espiritismo prosperou nesse terreno.
"Um país como o nosso tem antepassados europeus que trouxeram a Igreja Católica, antepassados negros que da África trouxeram as religiões e os rituais de origem africana, e também a presença do indígena com seus rituais próprios", contextualiza.
Por conta da diferença entre a religião criada por Kardec e suas transformações e interseções com outras religiões no Brasil, é comum que pesquisadores usem o termo "kardecismo", em vez de "espiritismo", para se referir ao espiritismo nascido na França.
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No resto do mundo
A doutrina religiosa, contudo, não floresceu com a mesma força em outros países.
Na França, tanto o "laicismo republicano" quanto a "força da Igreja Católica" acabaram por inibir "o desenvolvimento de um espiritismo de massas como o brasileiro", aponta Lewgoy.
Lá, os adeptos continuaram sendo um grupo restrito de intelectuais e membros da elite.
Já em países como Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, o espiritismo se deparou com o domínio protestante.
"Não havia o mesmo contraste com um catolicismo dominante que, no Brasil, serviu de impulso para o seu crescimento", diz o professor da UFRGS.
Outros países católicos, contudo, são lugares de Igreja mais controladora. É o caso de Itália, Espanha e Portugal.
Nesses lugares, não houve o florescimento — mesmo que sob repressão — de diferentes práticas religiosas como no Brasil, nem o sincretismo que acabou abrindo espaço para a convivência entre crenças e culturas diversas.
Aqui, apesar do controle religioso católico ter sido uma marca desde o início da colonização portuguesa, mesmo no meio dito católico outras práticas conviveram e ainda convivem.
Se já havia espaço e tolerância para benzedeiras, toda a sorte de simpatias e um catolicismo popular não ortodoxo, o espiritismo também conseguiu grassar.
Mesmo em países latino-americanos de história colonial similar à do Brasil, o espiritismo não pegou da mesma forma.
Para Lewgoy, isso ocorreu porque esses lugares não tiveram as condições específicas que favoreceram o espiritismo no Brasil, como o diálogo com o catolicismo popular aberto ao sincretismo e a rapidez em sua institucionalização.
E também o fato de que, em outros locais na região, o espiritismo acabou sendo fortemente rotulado como "bruxaria" ou "ocultismo".
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Declínio no Brasil?
De 2010 para cá, os espíritas no Brasil caíram 0,4 pontos percentuais em sua participação no total da população, o que representa cerca de 400 mil praticantes.
Para Lewgoy, o espiritismo está atualmente enfrentando uma "concorrência tripla": a expansão dos evangélicos; a legitimação das religiões afro-brasileiras (ou seja, o seu reconhecimento, aceitação e valorização em certas camadas da sociedade); e a secularização individualista (processo em que a religião se torna menos central na sociedade, que também passa a valorizar cada vez mais o indivíduo em detrimento de vivências coletivas).
A historiadora Célia Arribas endossa a constatação sobre as religiões afro-brasileiras.
"Por muito tempo, essas pessoas se declaravam espíritas porque havia a ideia de se dizer 'espiritismo de umbanda'. Com todo esse debate mais recente de ampliação do letramento racial [maior conhecimento e consciência sobre questões raciais e sobre racismo] e do orgulho que isso gera, essas pessoas têm se identificado mais claramente como umbandistas ou candomblecistas", afirma a professora.
De acordo com o Censo, pessoas que se afirmam praticantes da umbanda e do candomblé saltaram de 0,3% para 1,1% entre 2010 para 2022.
Arribas também avalia que faltam figuras para ocupar o espaço de lideranças carismáticas como Chico Xavier. Essa lacuna acaba se espelhando na indústria cultural, com menor presença do espiritismo em filmes e novelas, aponta.
"A gente tem assistido a uma influência evangélica nesse sentido."
Por fim, Arribas ainda lembra do cenário político atual de polarização no Brasil.
"O avanço do bolsonarismo e da ultradireita expulsou muita gente do espiritismo. Muita gente ficou insatisfeita com posições retrógradas e conservadoras do espiritismo", comenta ela, destacando que pautas vistas como "de direita", como aquelas relativas ao gênero e ao aborto, acabam sendo bandeiras de políticos espíritas.
Como essas pautas vão ao encontro da doutrina espírita mais tradicional, muitos espíritas se identificam com esse espectro político.
Para Lewgoy, o espiritismo brasileiro vive um momento de invenção de "um novo modelo de religiosidade para o século 21", com "menos fiéis e mais influência, menos instituições de massa e mais impacto cultural".
"O Censo 2022 mostra que o espiritismo brasileiro está vivendo não uma crise, mas uma metamorfose civilizacional", argumenta ele.
Para o professor, o que está mudando é que a religião está deixando de ser nacional e popular, e voltando a ser mais restrita às elites intelectuais, artísticas e profissionais.
"Os espíritas apresentam a maior taxa de ensino superior completo [48%, versus 16% da média nacional, segundo o IBGE], a menor taxa de analfabetismo [1%, versus 6% da média] e o maior percentual de acesso à internet [96%]", cita.
"Controlam um mercado editorial de centenas de editoras e milhares de títulos. Lideram hospitais, instituições assistenciais e redes midiáticas. Influenciam o vocabulário nacional", diz, mencionando termos como "carma", "mediunidade" e "evolução espiritual".
Ainda de acordo com o antropólogo, o espiritismo pode estar "antecipando tendências pós-seculares da religiosidade contemporânea", com maior ênfase nas experiências individuais e na convergência com a ciência.
"Isso não significa que se torne a religião dominante numericamente, mas que influencie as demais com seus valores e práticas. É possível que no futuro as religiões convencionais adotem mais elementos como caridade prática, ecumenismo, diálogo com a academia e interpretação espiritualista da Bíblia, aproximando-se do ethos espírita", diz.
