Entrevista exclusiva

Ingrid Betancourt, ex-refém das Farc: "Nós nos sentimos humilhados"

Ex-senadora da Colômbia que ficou no cativeiro, na selva, durante seis anos e meio, fala ao Correio e critica a decisão da Jurisdição Especial de Paz de não punir com rigor os chefes da guerrilha pelos sequestros

Ingrid Betancourt, em foto divulgada pelas Farc, ainda no cativeiro, na selva colombiana  -  (crédito:  Raul Arboleda/AFP)
Ingrid Betancourt, em foto divulgada pelas Farc, ainda no cativeiro, na selva colombiana - (crédito: Raul Arboleda/AFP)

A vida da ex-senadora colombiana Ingrid Betancourt parou entre 23 de fevereiro de 2002 e 2 de julho de 2008, quando permaneceu mantida refém das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), a extinta guerrilha maoísta. Aos 63 anos, Ingrid passou quase sete anos em poder dos guerrilheiros. Em 16 de setembro passado, quase uma década depois de assinarem um acordo de paz, líderes das Farc foram sentenciados pela primeira vez a realizarem trabalhos sociais e outras penas alternativas à prisão por mais de 21 mil sequestros na Colômbia. Em entrevista exclusiva ao Correio, Ingrid Betancourt criticou as sentenças. "Acho desconcertante pensar que, por um crime considerado crime de guerra e crime contra a humanidade, como o sequestro, a sentença proferida pelo juiz de paz os condene a pouco mais do que plantar árvores", ironizou. A ex-política disse que se sente indignada e humilhada pelo veredicto e criticou o acordo de paz forjado durante o governo do presidente Juan Manuel Santos.  

Como a senhora avalia o fato de Timochenko e outros líderes das Farc terem sido condenados a penas alternativas por sequestro?

Acho desconcertante pensar que, por um crime considerado crime de guerra e crime contra a humanidade, como o sequestro, a sentença proferida pelo juiz de paz os condene a pouco mais do que plantar árvores. O mínimo, para indenizar as vítimas, cumprir com a justiça e permitir a reconciliação, seria que os líderes das Farc fossem submetidos a severas restrições de movimento, conforme previsto no acordo de paz.

Na condição de ex-refém, a senhora acredita que a justiça não foi feita? Que sentimentos vivencia?

Como vítima das Farc, que me sequestraram por seis anos e meio, e em nome dos meus companheiros reféns, que em alguns casos foram mantidos presos por quase 15 anos, posso dizer que nos sentimos indignados e humilhados. Essa sentença constitui um pedido de desculpas pelo crime e um incentivo para continuar com os sequestros.

A pacificação da Colômbia exige punição exemplar para os sequestros?

Para que haja paz, é preciso que haja justiça. Nós, as vítimas, não pedimos vingança. Pedimos que a Justiça puna exemplarmente crimes que, por sua magnitude e gravidade, afetaram milhões de colombianos. Com essas sanções simbólicas, por um lado, a reconciliação entre vítimas e perpetradores é impossibilitada, pois os perpetradores veem que a Justiça justifica ideologicamente suas ações e seus crimes, falhando, assim, em proteger o direito das vítimas à verdadeira contrição de seus perpetradores. Por outro lado, impossibilita a paz, pois incentiva o tráfico de drogas e o sequestro, negócios que andam de mãos dadas, a continuarem lucrativos na Colômbia.

Ingrid, durante debate presidencial em Cáli, em 24 de abril de 2022
Ingrid, durante debate presidencial em Cáli, em 24 de abril de 2022 (foto: Paola Mafla/AFP)

O governo de Juan Manuel Santos cometeu um erro ao concordar com penas alternativas para sequestros? Por quê? Como essa ação afeta a senhora e outros ex-reféns?

O acordo de paz apresentou falhas desde o início. Isso foi objeto de debate na Colômbia e levou os colombianos a votarem contra o plebiscito que buscava sancioná-lo por voto popular. Dito isso, a Jurisdição Especial de Paz (JEP) tinha os instrumentos para punir criminosos com sanções restaurativas ativas, mas também com a perda rigorosa e efetiva da mobilidade. No caso emblemático do julgamento por sequestros em massa — mais de 21 mil sequestros foram ordenados por essa liderança das Farc —, era necessário impor a mais alta sanção de restrição de mobilidade possível, e nisso a JEP falhou.

A senhora ficou em cativeiro na selva por quase sete anos. Quais traumas carregou e o que mudou em sua vida?

O sequestro transforma qualquer ser humano. Estar acorrentada pelo pescoço a uma árvore por anos obriga a uma busca profunda pelo significado da dignidade humana. Muitos anos se passaram desde a minha libertação, e não há um dia na minha vida sem que eu tenha que enfrentar as consequências pessoais, familiares, profissionais, políticas, econômicas, psicológicas, físicas e mentais do sequestro. Escrevi um livro, No Hay silencio que no termina, para registrar essa experiência com a intenção de quebrar o silêncio e poder compartilhar o que foi tão difícil para mim dizer pessoalmente.

 

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postado em 22/09/2025 22:06 / atualizado em 22/09/2025 22:15
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