OPINIÃO

Rosane Garcia: Equidade no ventre

Rosane Garcia
postado em 23/07/2021 06:00 / atualizado em 23/07/2021 08:41
 (crédito: Mauro Pimentel/AFP)
(crédito: Mauro Pimentel/AFP)

Fim de semana. Dois dias de folga, um deles para ir às compras de supermercado. Eis que, entre uma gôndola e outra, deparo-me com uma mulher branca empurrando um carrinho de bebê, com duplo assento, ocupado por duas meninas. Os traços faciais não deixavam dúvida de que eram gêmeas, mas a cor da pele era muito diferente: uma tinha a pele bem clara e a outra, o tom africano.

Estava ali a equidade de raça, gestada no mesmo ventre. Embora não tivesse dúvida, não contive a curiosidade e indaguei: São gêmeas? A mãe, com sorriso orgulhoso, respondeu: “Sim. São gêmeas fraternas. Meu marido é negro. Por isso, uma nasceu da minha cor, e a outra puxou a ele. Elas não são lindas?” Os traços faciais muito harmoniosos das meninas davam total razão àquela mãe afetuosa. E ali nos despedimos, para continuarmos as compras.

O afeto, o respeito e a segurança daquela mãe com filhas deveriam ser padrão em relação a todas as crianças, mas são negados a uma enorme parcela delas e dos adolescentes. O Brasil, no ranking mundial, é o quinto mais inseguro e violento para essa camada da sociedade, que soma quase 70 milhões de indivíduos, entre os quase 212 milhões de brasileiros.

Grande parte dos lares é um ambiente inseguro para crianças e adolescentes. Entre menos de um ano e 19 anos, os casos de estupros até 13 anos ou menos passaram de 70%, em 2019, para 77% em 2020. Isso ocorreu em plena crise epidemiológica, causada pela covid-19. Ou seja, a cada ano, as vítimas de estupro no Brasil são mais jovens. Em 2019, o percentual da violência sexual contra menores de 1 ano a 9 anos chegou a 37,5% e fechou 2020 em 40%, sem contar a subnotificação decorrente da pandemia.

A crise sanitária não freou a matança na camada infantojuvenil do país. Foram mortos pelo menos 267 pequeninos com menos de um ano a 11 anos, em 2020. Entre os adolescentes, de 12 a 19 anos, ocorreram 5.855 mortes violentas intencionais. No total, 6.122 vidas, precocemente, ceifadas. Uma tragédia que se repete há mais de dois anos: 17 crianças e adolescentes são mortos por dia no Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ressalte-se: mais de 75% das vítimas são negras.

Os dados mostram a seletividade dos crimes neste país, seja pelas mãos de marginais, seja pelas forças de (in) segurança pública, seja pela ausência de efetivas políticas públicas para famílias, mas, sobretudo, no campo da educação em todas as faixas etárias, cuja ausência brutaliza e desumaniza as pessoas. O racismo, nas mais variadas formas, ganha força, como fiel da balança, entre vida e morte.

Mata, inclusive, crianças e jovens, hipocritamente tratados como o “futuro” da nação, pelas autoridades que detêm o poder de acabar com a matança. A imagem das meninas gêmeas, com tonalidades de pele diferentes, traduz o quanto é imbecil a “supremacia branca”, quando todos os humanos e todos os seres são crias do ventre Terra, e a ele retornarão pela finitude da vida.

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