OPINIÃO

Um país entre a água e o fogo

Correio Braziliense
postado em 24/11/2021 06:00

Os brasileiros se habituaram, ao longo dos anos, a ver o país às voltas com duas estações de desastres ditos "naturais", intercaladas por breves períodos de alívio que mal permitem que poder público e cidadãos se preparem para danos que estão novamente por vir. No momento em que as regiões mais populosas do Brasil estão prestes a enfrentar os tempos mais duros da estação das águas, estudo da Confederação Nacional de Municípios (CNM) se destaca por contabilizar prejuízos causados pelas temporadas de seca e fogo — que, em breve, tendem a ser esquecidos diante de mais estragos provocados por inundações e deslizamentos.

Antes que isso ocorra, convém dar atenção ao que mostra a CNM. Segundo o estudo, que mapeia intervalo de seis anos (2016 a 2021) valendo-se de dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, municípios brasileiros tiveram no período 2.111 decretos de situação de emergência registrados no Ministério do Desenvolvimento Regional diante de prejuízos causados por incêndios. É como se quase 40% das 5.570 prefeituras do país tivessem, em algum momento, enfrentado catástrofes causadas pelas chamas.

Nesse aspecto, 2020 se destaca com 885 desses decretos, ou 42% do total em seis anos. Um dado que merece ainda mais atenção pelo fato de o recorde ter ocorrido em um ano de pandemia, em que a atividade econômica do país — como de resto do mundo — desacelerou bruscamente. E 2021, ainda marcado pela crise sanitária, não ficou muito atrás, com 558 decretos de emergência (26,4%), seguido de 2019: 338, ou 16% do total.

Coincidência ou não, a atual gestão federal, marcada na esfera ambiental pela atuação polêmica do ex-ministro Ricardo Salles, coincide com 85% dos decretos de emergência registrados na Defesa Civil em função do fogo nos últimos seis anos. Salles deixou o governo em junho último, após uma administração que, muito mais que a defesa de sua área, ficou marcada pela intenção de "ir passando a boiada" nas regras que disciplinam o setor, enquanto a imprensa se ocupava da pandemia — segundo declaração do próprio registrada em reunião ministerial de abril de 2020.

Tornando ao estudo da CNM, ele cuida também de medir os custos econômicos dessa realidade, que levou tantos municípios a pedir socorro à Defesa Civil Nacional. Em seis anos, incêndios florestais consumiram mais de R$ 1 bilhão em recursos públicos e privados do país — R$ 1.157.320.779, mais precisamente. Entre as áreas mais afetadas, destaque para pecuária e agricultura, que somam mais R$ 800 milhões em perdas. E a observação de que, apesar de o montante já ser assustador, ele não contempla dados de oito das 27 unidades da federação, que não informaram à CNM danos sofridos com o fogo no período.

Mesmo sem considerar os enormes prejuízos não quantificáveis financeiramente, como contribuição para o aquecimento global, danos à biodiversidade e à disponibilidade de água, apenas as perdas econômicas apontadas já seriam suficientes para disparar todos os alertas. Mas, ao se observar os valores destinados pela União nos mesmos seis anos a ações de prevenção e combate a incêndios, fica mais fácil entender por que a próxima temporada de fogo tende apenas a aumentar as estatísticas: foram R$ 376 milhões, ou o equivalente a 37% do total de prejuízos.

Sair desse ciclo de desastres exige que a nação consiga se programar para pensar no fogo durante a estação das águas, e nas enchentes na temporada de seca. Sem isso, poder público e iniciativa privada seguirão queimando recursos apenas para apagar incêndios.

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