Visto, lido e ouvido

Vitaliciedade apenas para a ética pública

Circe Cunha
postado em 04/12/2021 06:00

Numa República que faça jus ao nome e que objetive a universalização do bem público, não caberia, por razões óbvias e éticas, a existência de cargos e outras sinecuras no serviço público, do tipo vitalício. O próprio sentido da vitaliciedade já desconfigura a República naquilo que ela possui de mais característico, que é a impessoalidade e o interesse comum.

Ao se assenhorear de um cargo vitalício, todo e qualquer indivíduo adentra para um mundo onde as leis naturais, que regem outros homens, já não possui mais sentido. Nesse ambiente, distantes anos luz de qualquer sentido republicano, o tempo cuida de amalgamar o cargo, a função e o próprio indivíduo, transmutando tudo num só elemento, em que já não é possível separar e distinguir sujeito e objeto.

O cargo e a função vitalícia representam não só o antípoda da República, como cuida de desmaterializá-la, desmoralizando-a frente a sociedade. Ao transplantar esse modelo próprio da antiga monarquia para a República, o que o instituto da vitaliciedade conseguiu foi a contaminação da correta e isenta prestação dos serviços públicos com elementos personalistas, distantes, pois, aos interesses dos cidadãos.

Ao mesmo tempo em que se afasta das necessidades dos cidadãos e da própria ética pública, a vitaliciedade faz da máquina pública um mecanismo a serviço das elites. Para além de servir como instrumento de impunidade para aqueles que se eternizam nesses cargos, a vitaliciedade cria, aos olhos de todos, cidadãos de primeira e de segunda classes, tornando esses privilegiados e outros, aos quais protegem, blindados pelo manto de intocabilidade, livres de quaisquer punições, mesmo que cometam crimes não condizentes com o cargo que ocupam.

Quando apanhados em crimes e delitos de grande repercussão, dos quais os cidadãos comuns jamais se livrariam, esses eternos senhores são punidos com aposentadoria compulsória, recebendo salário integral e outras prebendas como reparação a expulsão do paraíso. Muitos são os casos de escândalos ocorridos nesses postos, poucas as punições e nenhuma iniciativa para pôr fim a esses privilégios, já que eles, contribuem direta ou indiretamente para dar cobertura também aos malfeitos das elites.

Esse é o caso, por exemplo, de ministros e conselheiros dos Tribunais de Contas estaduais e da União, que, em tese, deveriam fiscalizar os gastos públicos da classe política e dos dirigentes em geral, mas que agem para impedir que os crimes contra o patrimônio público sejam devidamente apurados e punidos.

Somente no Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ), toda a cúpula do órgão foi afastada e presa por denúncias de corrupção em 2017, na Operação Quinto do Ouro. Com isso, o caminho para o combate às malversações do erário caberia a esse órgão, mas que já era aberto e franco, ficou com as cancelas totalmente arrombadas, aumentando ainda mais o estado falimentar das finanças públicas da antiga capital.

Obviamente, com as consequências catastróficas que esse fato teve para a saúde pública, para a educação, a segurança e outros serviços necessários à população. Na contramão desse saneamento o STF, onde a vitaliciedade também é direito constitucional, vem pouco a pouco concedendo habeas corpus a esses conselheiros, permitindo que eles regressem aos cargos no Tribunal de Contas do Estado.

Por certo, todos irão, cedo ou tarde, retornarem, como retornarão também os casos de corrupção dentro e fora do Tribunal, o que, por sua vez, permitirá também que toda a máquina administrativa daquela unidade da federação volte a ser terra arrasada ou terra de ninguém.

Esperar que qualquer sentença judicial transitada em julgado venha a pôr fim a esse caso é esperar pelo que jamais irá acontecer. A vitaliciedade de uns acoberta e protege a vitaliciedade de outros, e todos vivem felizes para sempre nessa terra do nunca em que se transformou os cargos vitalícios.

A briga de foice que acontece nos bastidores por vagas no supremo, acontece também por vagas do TCU. As razões são sabidas: todos esses cargos levam o contemplado a uma espécie de paraíso na terra, onde as mordomias são infinitas, as obrigações são poucas e os castigos não acontecem. De vitalício para uma República, bastaria a ética.

 


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