Opinião

Lições da pandemia: quando a política atrapalha a ciência

Correio Braziliense
postado em 07/01/2022 06:00

FLÁVIO ADSUARA CADEGIANI - Médico endocrinologista, mestre e doutor em endocrinologia clínica pela Unifesp/EPM, pesquisador principal do AndroCoV Trial

Chegamos ao fim de 2021, quase dois anos depois de a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretar a primeira pandemia do século 21. Infelizmente, uma doença que tirou a vida de mais de 5 milhões de pessoas no mundo, entre elas, 618 mil brasileiros. A notícia de um vírus desconhecido deixou o mundo atônito e, apesar dos gigantescos desafios e da imensurável dor, é preciso exaltar a evolução que conquistamos no campo da ciência e da medicina.

Em um tempo surpreendente, a comunidade científica se mobilizou e, em alguns meses, os primeiros potenciais imunizantes mostraram resultados preliminares positivos e, em 10 meses, o primeiro foi aprovado. A partir daí, outras potenciais vacinas surgiram e, com elas, a esperança de que o mundo superaria a pandemia. Porém, a mobilização não pode parar.

As vacinas já salvaram milhares de vidas, mas sozinhas não bastam. As variantes do vírus não param de surgir e, sem uma política global de imunização em massa com um imunizante que seja eficaz em interromper a transmissão, novas ondas virão para nos derrubar. Não podemos parar de estudar as vacinas e seus efeitos a longo prazo. Até agora, por exemplo, não se sabe se a variante Ômicron é mais leve ou se está mais leve porque a maioria dos infectados é de vacinados.

Por isso, enquanto as vacinas não forem capazes de inibir e erradicar a pandemia da covid-19, é necessário o investimento em drogas capazes de evitar as formas mais graves da doença. Só com a quase totalidade da população vacinada e com remédios eficazes é que poderemos voltar a viver sem medo. A resposta para a covid-19 não é única. Uma doença com mecanismos tão complexos não se deixa combater fácil. Assim como foi com o HIV, que só foi derrotado quando um coquetel de drogas foi empregado, e com as hepatites B e C, o coronavírus precisa de uma atuação em múltiplas frentes simultaneamente.

E, para chegar a esse patamar de discussão científica, é necessário separar ciência de política. Obviamente, os dois acabam se encontrando, principalmente para fins de políticas de saúde pública, mas o entrelaço sem critério prejudica os estudos e dogmatiza a ciência. Isso, nada mais é que a anticiência, ou melhor, o neo-obscurantismo, travestido de ciência. Narrativas que avaliam a ciência sob qualquer tipo de influência política são de credibilidade questionável. Ao menos no Brasil, o debate se distanciou de qualquer razoabilidade e caiu na polarização infantil: o cientista que defende remédios, automaticamente, ganha o rótulo de antivacina, e vice-versa. Esse extremismo só tem um vencedor: o vírus.

A verdadeira ciência requer racionalidade, observação, hipótese e tentativa. Clama por razoabilidade, coerência e proporcionalidade. A descoberta exige coragem. Não é porque houve uma aposta em um ou outro medicamento com pouca ou nenhuma eficácia que todos serão. Há substâncias muito promissoras sendo testadas. No Brasil, entre erros e acertos, os hospitais chegaram a medicamentos, em sua totalidade, reposicionados, patenteados ou não. É a ciência humanizada que entende que pessoas valem mais do que planilhas. Se há segurança na medicação, a tentativa é bem-vinda.

Essas descobertas devem ser celebradas. E, sem preconceito, é preciso olhar para todas elas. As substâncias que controlam os hormônios têm de ser consideradas, afinal, a entrada principal do Sars-CoV-2 ocorre pela ECA-2 - proteína fundamental do sistema endócrino. A segunda proteína, que prepara o vírus para entrar nas células, a TMPRSS2, tem como único controlador da sua expressão os hormônios androgênicos, ou melhor, hormônios com ação de testosterona. O bloqueio da atividade androgênica é um caminho extremamente promissor, com resultados solidamente demonstrados. Ignorar isso significa deixar de salvar vidas.

Em estudos realizados no Brasil, testamos essas substâncias com metodologia rígida. Em pesquisas clínicas e hospitalares - todas aprovadas por órgãos responsáveis como a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - inibidores da testosterona como a dutasterida e a proxalutamida mostraram excelentes resultados. Por exemplo, obtivemos uma redução de 77,7% de mortalidade em pacientes hospitalizados, números auditados e aprovados por três comitês científicos independentes.

Infelizmente, enquanto a política se sobrepôs à ciência, os números da ciência não mentem - e tampouco devem ser desvirtuados. O vírus já tirou milhares de vidas e é contra ele que devemos lutar, com todas as armas: vacinas, medidas preventivas, tratamentos, tudo enfim, para evitar a doença. E, se não puder ser evitada, que seja combatida. E devemos, acima de tudo, celebrar cada conquista contra o vírus, cada arma descoberta contra essa doença que assola o mundo em pleno século 21.

Aprendemos muito nessa pandemia. Pela primeira vez, talvez, gerou-se um interesse genuíno pela ciência, como ela é feita, como os resultados são obtidos. Entretanto, alguns aprendizados ainda precisarão de mais tempo para serem depurados. A ciência do extremismo não é ciência. Que olhemos para essa oportunidade para ampliarmos os horizontes e nos prepararmos para os desafios futuros, com união, respeito, empatia e amor ao próximo.

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