Opinião

A clínica psicanalítica não se aprende na universidade

Correio Braziliense
postado em 27/01/2022 06:00

MARIA FÁTIMA SILVEIRA DOS SANTOS - Doutora em psicologia clínica, é psicanalista associada e docente da Sociedade de Psicanálise de Brasília

O oferecimento de bacharelado em psicanálise por uma instituição de ensino superior do país mostra o apreço que nós, brasileiros, temos pela interação terapêutica criada por Sigmund Freud. É possível até que outras instituições de ensino acompanhem esse movimento. Mas cabe esclarecer que as razões do prestígio alcançado pela psicanálise são as mesmas que impedem que clínicos psicanalistas sejam formados por universidades.

O prestígio que a psicanálise tem no Brasil decorre diretamente da formação psicanalítica, que é a forma típica de preparação de um psicanalista. Sociedades de psicanálise e escolas de formação de psicanalistas existem desde muitas décadas no Brasil. Vem delas, como psicanalistas ou como supervisores de jovens iniciantes, boa parte dos profissionais psicanalistas atuantes hoje. Gerações de psicanalistas foram formados e essas instituições foram peças-chave na percepção de que o método psicanalítico é efetivo para lidar com o sofrimento psíquico humano.

Como se dá a formação de um psicanalista? Um psicanalista não se forma por conhecimentos acrescentados, tal como acontece em uma especialização universitária. Também não é pelo treinamento de técnicas psicológicas. Uma pessoa se torna psiquiatra pelo conhecimento acrescentado ao longo de uma residência, e um psicólogo clínico se habilita pelo treinamento em uma técnica determinada. Ambas as profissões prestam importantes serviços à saúde psíquica das pessoas que a elas recorrem.

Mas um psicanalista é formado de outra maneira. O núcleo pulsante da sua formação é o processo de psicanálise pessoal ao qual se submete. Esse processo possibilita que seus impulsos e ações sejam colocados a serviço da observação do sofrimento e da promoção da saúde de seu paciente. Não é uma coisa óbvia como pode parecer. Todo bom profissional de saúde está a serviço do bem-estar de seu paciente. É verdade, mas há uma especificidade decisiva na prática de um psicanalista.

Ele é tocado no próprio psiquismo (e assim deve ser sempre) pelo sofrimento daquele que o procura. Não poderá, como um médico ou um psicólogo, manter a empatia, mas se afastar do sofrimento para bem atender. Não, um psicanalista é convocado pelo sofrimento do paciente e esse ressoar se torna o centro do encontro. É em meio ao ecoar do sofrimento que o psicanalista vai oferecer o pensamento vivo que lhe ocorre, isto é, a interpretação da experiência emocional em curso.

Há uma comunicação muito direta entre os dois indivíduos que estão na sessão psicanalítica. Para sustentar essa comunicação entre duas mentes que se tocam e vibram de forma contundente no encontro, o analista necessita passar por um processo específico de preparação, a formação psicanalítica.

Nesse processo, o analista se prepara para permanecer em abstinência de desejos próprios e de aceitação do protagonismo de ações e decisões do paciente. Essas duas condições psíquicas permitem ao psicanalista mergulhar na jornada de busca para a qual é convidado pelo paciente que recebe. O desenvolvimento delas é o objetivo de uma psicanálise de formação.

Tornar-se psicanalista significa passar pelos processos de busca de si e de afastamento de seus excessos e preconceitos para poder mergulhar em condições adequadas à jornada de descoberta do paciente. Camadas de respostas sociais aprendidas e de ideias pré-concebidas são retiradas pelo processo psicanalítico de formação para que se possa mergulhar na autenticidade de cada encontro entre paciente e analista.

Além da atividade central de observação e descoberta de si mesmo, a formação psicanalítica comporta também a prática supervisionada por um profissional mais experiente. Ambas são realizadas durante alguns anos. A habilitação como psicanalista não pode se processar onde análise pessoal e supervisão sejam tratadas como acessórias.

A análise de formação e as supervisões de atendimentos são fundamentos da profissão de psicanalista e, por essas características, a habilitação de um psicanalista não pode se processar no formato de especialização como as oferecidas pelas universidades. Simplesmente, porque não é possível ensinar a alguém a ver sem preconceitos pessoais nem se pode ensinar a dar a primazia ao outro no relacionamento. Não. Ambas as atitudes são desenvolvimentos alcançados ao longo do processo de psicanálise do próprio psicanalista. Disso não se pode abrir mão. Pela saúde de pacientes e pela boa preparação dos futuros psicanalistas brasileiros.

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