Fome

Análise: O papel do continente americano perante a crise alimentar mundial

Correio Braziliense
postado em 06/04/2022 06:00
 (crédito: Catálogo de Pensamentos/Unsplash)
(crédito: Catálogo de Pensamentos/Unsplash)

MANUEL OTERO - Diretor-geral do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA)

Uma violenta confluência de crises de grandes dimensões sem fim à vista coloca o mundo em tensão. É a convergência simultânea dos piores fatores possíveis: uma pandemia, a desestruturação das cadeias de logística, secas extremas e vulnerabilidade climática generalizada. Além de tudo isso, um conflito bélico, que envolve dois atores relevantes em termos de produção e comércio agroalimentar e energético, altera os mercados e destrói a infraestrutura produtiva.

O contexto tem o potencial de esconder outros "cisnes negros" de diversos tipos e profundidades disruptivas e coloca em destaque os sistemas agroalimentares do continente americano, principal região exportadora líquida de alimentos e âncora fundamental da sustentabilidade ambiental e da biodiversidade do mundo, além de um relevante fornecedor de energia e minerais no âmbito global.

A intensificação dessas tensões afeta os frágeis equilíbrios da segurança alimentar, nutricional e ambiental do planeta, minando suas bases, enquanto nos países se intensifica uma preocupação permanente sobre outra equação sensível: proporcionar à população alimentos a preços acessíveis e, ao mesmo tempo, assegurar níveis mínimos de rentabilidade para os agricultores.

A América Latina e o Caribe são as regiões exportadoras líquida de alimentos mais importante do mundo. Ao incluir a América do Norte, quase um terço dos alimentos produzidos e consumidos no planeta provém das Américas.

Mas essa visão agregada esconde realidades contrastantes de um continente heterogêneo, em que convivem grandes exportadores (principalmente os países do Mercosul) com importadores líquidos de alimentos, possui uma cesta exportadora com valor agregado relativo e um baixo nível de comércio interno (14%), em comparação ao registrado na América do Norte (46%) e na União Europeia (65%).

A pandemia nos fez retroceder quase duas décadas em termos sociais. A pobreza e a extrema pobreza aumentaram, junto com a insegurança alimentar, e as débeis previsões de expansão econômica geram preocupação sobre a possibilidade de uma nova década perdida em termos de desenvolvimento.

A guerra soma pressão e atinge exportações pontuais de países como Equador, Colômbia, Paraguai e Uruguai, que têm exposição significativa ao mercado russo em produtos como banana, carne bovina e lacticínios. Os aumentos nos preços das matérias-primas alimentares representam um duro golpe para países em que prevalece a subnutrição, como o Haiti, e para as nações do Triângulo Norte centro-americano, além de Granada, Venezuela, Bolívia, Nicarágua e Santa Lúcia.

O aumento nos preços da energia tem, além disso, aspectos multiplicadores nos custos dos insumos, produtos e serviços ao longo de todas as cadeias agroalimentares, pois Rússia e Belarus — afetados por sanções comerciais — são tradicionalmente grandes fornecedores de fertilizantes a base de nitrogênio, fósforo e potássio.

Pela posição regional de âncora fundamental da segurança alimentar e nutricional do planeta e pilar da sustentabilidade ambiental e da biodiversidade, as crises concomitantes exigem focar esforços nas populações vulneráveis e facilitar, de forma urgente e sustentada, o intercâmbio comercial intrarregional e internacional, promovendo uma verdadeira parceria que promova o comércio agropecuário na América Latina e no Caribe.

Trata-se de unir esforços entre os países e fortalecer as instâncias de coordenação de políticas setoriais, favorecendo a ação coletiva em benefício de todos.

Paralelamente, e atendendo estrategicamente às necessidades de curto e médio prazos, mostra-se imprescindível um grande esforço articulado em termos de ciência, tecnologia e inovação, com o quadro correspondente de políticas públicas e investimentos, com objetivos ambiciosos e estruturantes: que nossos sistemas agroalimentares utilizem os recursos naturais da maneira mais eficiente, gerem empregos dignos com inclusão social, proporcionem dietas saudáveis e sejam sustentáveis sob o ponto de vista ambiental.

O conflito bélico não fez nada além de reafirmar que a segurança alimentar está no topo das preocupações do planeta, e que o continente americano reforça a sua validade e liderança como avalista do fornecimento de alimentos saudáveis e abundantes em escala global.

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