Iara Deodoro - Assistente social, coreógrafa, arte educadora, produtora cultural e coordenadora geral do Instituto Sociocultural Afro-Sul Odomode
Ser negro no Rio Grande do Sul, um estado que promove, para além do preconceito, o apagamento de qualquer possibilidade de consciência racial, é ato contínuo de resistência. Ao longo da caminhada, tenho notado que é baixo o acesso a informações que podem contribuir para a formação da consciência de quem não se identifica com a educação vigente, imposta de cima para baixo. Sem registros oficiais, o cultivo dos costumes afro-brasileiros sempre se deu por meio da oralidade, perdendo-se um pouco da história à medida que os mais velhos, detentores da sabedoria, desapareciam.
Na infância e adolescência, estudei como bolsista em uma escola de freiras, onde tive acesso à cultura majoritária, única, ideal para a formação de todos. Sem me reconhecer nesse cenário, imergi profundamente no universo da dança, ensaiando meus primeiros passos como bailarina, estudando os mais diferentes estilos. Mas, mesmo com a consciência da base sólida de minha formação de multiplicadora cultural, sentia falta de um elo, de uma conexão entre os movimentos que meu corpo realizava e minha alma. Faltavam-me referências de arte afro-brasileira.
Foi então que encontrei no culto aos Orixás e no carnaval o impulso para seguir minha busca pelos elementos que completariam minha essência, fortificando a consciência negra que intuitivamente já cultivava. Quando conheci e comecei a participar do Grupo de Música e Dança Afro-Sul, no início da década de 1970, vi acender uma chama que ilumina minha alma até hoje, pois um novo horizonte legitimou minha busca, propiciando contato com minha ancestralidade através da arte. Essa ligação, ou religação, permitiu que os movimentos da minha dança acontecessem de forma intuitiva. Anos mais tarde, tive a certeza de que estava no caminho certo.
Paralelamente ao grupo, também percebi o carnaval como um veículo de inclusão social e cultural, um caminho para disseminar a cultura afro e ampliar os olhares eurocentrados da comunidade negra de Porto Alegre. Foi assim que fundamos a Sociedade Cultural Beneficente Escola de Samba Garotos da Orgia, em 1980, cujo estatuto expressava a obrigatoriedade de temas enredos que enaltecessem a cultura negra e suas origens. Cada desfile era uma aula de história, pois os enredos eram inspirados em lendas originárias dos diversos povos africanos, na religiosidade, nas manifestações folclóricas identitárias do negro no território brasileiro e em personagens icônicos, símbolos da luta pela liberdade no Brasil.
Nessa jornada percebi que a busca pela disseminação da cultura negra é muito mais profunda, é um anseio coletivo bem mais amplo do que eu imaginava. No carnaval de 1988, a escola apresentaria o tema-enredo Tenda dos Milagres, baseado no livro homônimo de Jorge Amado. Ainda muito distantes da tecnologia e do acesso às conexões digitais, escrevemos ao autor da obra, pedindo autorização para desenvolvermos um desfile traduzindo em plástica ospersonagens da sua literatura.
Ele não só nos retornou, permitindo retratar sua criação, como enviou o roteiro completo da obra transformada em minissérie pela TV Globo, pondo-se à disposição para quaisquer dúvidas. Neste momento, entendi que um livro, uma produção de TV e uma escola de samba têm poderes equivalentes, a mesma capacidade de informar e disseminar cultura. O carnaval tem um papel importante não apenas para a educação de suas próprias comunidades como para a população geral que o acessa.
Outrora encontrei na Garotos uma forma de levar ao alcance da comunidade fagulhas de consciência e busca por pertencimento — e, hoje, vejo a continuação do meu sonho tornando-se realidade nos desfiles de tantas outras entidades.
Também me sinto realizada em ver a academia reconhecendo o conhecimento empírico das escolas de samba e os segmentos que as formam, servindo como objetos de estudo e temas de monografias, dissertações e teses. Contrariando os ideais de uma cultura embranquecida que historicamente nos é imposta, esse movimento popular serve como grito de protesto para quem nunca se vê representado culturalmente e que, formado majoritariamente por negros, se confirma como um ato de resistência contra o apagamento ao qual tentam submetê-lo.
A mola propulsora para essa transformação é a cultura que educa, acolhe e gera conteúdos reflexivos, como os enredos que levam para o desfile a força dessas simbologias. São esses temas, verdadeiros patrimônios imateriais, que evidenciam a ressignificação do carnaval, bem como o papel do povo como protagonista de sua própria história, celebrando novas conquistas em um novo tempo.
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